Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

terça-feira, 24 de julho de 2018

Helénicos



Folha, Uol





Ira de Aquiles, filho de Peleu,
deusa, concede que eu celebre em canto,
ira fatal que aos acaios impôs
uma miríade de sofrimentos;
muitas almas de força e valentia
fez descender para a casa de Hades;
almas de heróis cujos corpos sem vida
relegou como espólio para os cães
e de banquete às aves de rapina.
Assim cumpria-se o plano de Zeus
desde o primeiro momento em que os dois
por força da discórdia se apartaram,
o Atrida, soberano de varões,
e o filho de Peleu, divino Aquiles.
Quem dentre os deuses incitou os dois,
por meio da discórdia, a contenderem?
Foi o nascido de Leto e de Zeus,
que, movido por raiva contra o rei,
fez com que sobre o exército avançasse
terrível peste – o povo perecia –
por motivo de o sacerdote Crises
ter sido desonrado pelo Atrida.
Isso ocorreu no dia em que ele fora
até as rápidas naves aqueias
a fim de libertar a sua filha,
carregando um resgate imensurável
e tendo em suas mãos sinais divinos,
lauréis de Apolo, flecheiro infalível,
entrelaçados em seu cetro de ouro.
Pedia para todos os aqueus,
mas sobretudo para os dois Atridas,
comandantes de povos e varões:
“Filhos de Atreu e vós outros aquivos,
guerreiros de cnêmides bem-feitas,
que para vós concedam os divinos,
possuidores de olímpicas moradas,
saquear a priâmea cidadela
e ter um bom retorno para casa.
Mas libertai minha filha querida,
aceitando os resgates que vos trago.
Sede tementes ao filho de Zeus,
o arqueiro de infalível mira, Apolo.”
Nisso, os outros acaios aclamaram
com jubilosos gritos o discurso:
que o sacerdote fosse respeitado
e que se recebessem os resgates.
Somente ao filho de Atreu, Agamêmnon,
isso não alegrava o coração.
Terrivelmente rechaça o ancião
e o manda embora com grave discurso:
“Que eu não te encontre novamente, velho,
junto das côncavas naves aqueias,
nem agora tardando em retirar-te
nem mais tarde voltando para cá.
De nada poderão te auxiliar
esse teu cetro e as insígnias do deus,
pois eu não a libertarei jamais
antes de lhe sobrevir a velhice
dentro do meu palácio, lá em Argos,
muito longe da terra de seu pai,
frequentando o tear a cada dia
e me encontrando ao leito a cada noite.
Agora parte! Não me encolerizes,
que assim talvez tu salves tua vida.”
Assim falou. O velho, amedrontado,
obedeceu às ordens recebidas.
Partiu calado, caminhando só
junto das dunas do mar murmurante.
Depois que se afastou do acampamento,
o velho então rezou com grande empenho:
“Apolo, meu senhor, tu que nasceste
de Leto, de belíssimas madeixas,
escuta minha prece, do arco argênteo,
tu que zelas solícito por Crisa
e por Cila, terreno consagrado,
e que em Tênedo reges com poder.
Esminteão, se alguma vez outrora
ergui um belo templo para ti,
ou se acaso eu alguma vez outrora
queimei ossadas de coxas com banha,
ossos de coxas de touro ou de bode,
concede para mim o que desejo:
faz com que os dânaos me paguem todas
as minhas lágrimas com tuas flechas!”
Assim ele falou em sua prece
e Febo Apolo logo o escutou.
Ele baixa dos píncaros do Olimpo,
enraivecido desde o coração,
trazendo junto aos ombros o seu arco
e a aljava de feitura primorosa.
Junto às espáduas do deus furioso,
retiniam agudos os projéteis
à medida que se movimentava
avançando semelho à própria noite.
Logo senta distante dos navios
e então dispara a primeira das flechas.
Um terrível clangor ressoa ao longe
espraiando-se do arco prateado.
Acometeu primeiro contra os mulos
e logo após contra os fúlgidos cães.
Na sequência, contudo, pondo a mira
de seu dardo aguçado contra os homens,
ele atirou. Sem pausa, dia e noite,
as piras de cadáveres queimavam.
                         Homero, in ILÍADA (Tradução de Leonardo Antunes)






segunda-feira, 23 de julho de 2018

O Sorriso Perdido

R

NoA

EFÉNS DO BOKO HARAMtíci LIBERTADOS NA NIGÉRIA: "AINDA DÓ






"O que se percebe imediatamente é que as crianças aqui quase não riem", conta um funcionário do acampamento de Malkohi, na periferia da cidade nigeriana de Yola. Cerca de metade das perto de 300 pessoas que eram mantidas em cativeiro pelo Boko Haram tem menos de 18 anos. Um terço das crianças no acampamento sofre de desnutrição.”



Adrian Kriesch, António Cascais





      Notícias da Nigéria em dias de Julho.





quinta-feira, 12 de julho de 2018

Ainda amo...

Cá de casa.






É um tempo que se escoa. Foge nos dias longos e quentes. Corro porque me esperam. Trabalho. Trabalho. Trabalho ainda. São dias vivos, preenchidos por olhares iluminados.




Cá de casa.

Ainda amo... o olhar doce e inquieto dos adolescentes.





Cá de casa.



Ainda amo...os meus alunos.





Cá de casa.


Faz frio. Há nevoeiro. Tanto vento! Esticaram e aqueceram os dias... e corro, corro ainda. Ah, o trabalho! Há o trabalho. Sempre novo, instável, fluído na burocracia intensa. Exaustos os dias.




Cá de casa.

Fora da realidade virtual. Imersa no labor dos dias que voam.
Colhamos, hoje, os frutos! Colhamos, hoje, os frutos na fragrância dos dias! Livres voarão, fortes correrão...e, eu concluo, humildemente: ainda amo as flores! 



Ana



quarta-feira, 13 de junho de 2018

« A poesia não é feita de palavras, mas da cólera de não sermos deuses.» (A. Bessa Luís)


in, Chão da Areia



«Sou filho de camponeses, passei a infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que prolongam o Alentejo e, desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio do amor vigilante e sem fadiga de minha mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes mergulham desde a infância no mundo mais elementar. Guardo desse tempo o gosto por uma arquitectura extremamente clara e despida, que os meus poemas tanto se têm empenhado em reflectir; o amor pela brancura da cal, a que se mistura invariavelmente, no meu espírito, o canto duro das cigarras; uma preferência pela linguagem falada, quase reduzida às palavras nuas e limpas de um cerimonial arcaico - o da comunicação das necessidades primeiras do corpo e da alma. Dessa infância trouxe também o desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas formas é sempre uma degradação; a plenitude dos instantes em que o ser mergulha inteiro nas suas águas, talvez porque então o mundo não estivesse dividido, a luz cindia (dividida), o bem e o mal compartimentados; e, ainda, uma repugnância por todos os dualismos, tão do gosto da cultura ocidental, sobretudo por aqueles que conduzem à mineralização do desejo num coração de homem. A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia, é simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e ainda não consumada.»

                                                                                                Eugénio de Andrade





As palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

                   Eugénio de Andrade

Jornal do Fundão



Mais um ano lectivo chega ao seu final. Turbulento. O meu labor é o da palavra. Como Eugénio, acredito nessa pureza inicial da Língua. Mesmo quando, em anos passados, o meu trabalho aconteceu em gabinete - coisa que abomino, mas a que não pude fugir algumas vezes - o poema acima servia de base, na secretária, ao meu trabalho diário. Era um lema, pautava cada dia. É o meu poema. Aliás, Eugénio é a minha alma. Mansa e apaixonada. Calema, diria a minha amiga Isabel. E...tantos são os Poetas que cruzam o meu caminho, a minha vida! A todos amo, mas este é singular pela emoção estética que me desencadeia. A sua fímbria de uma simplicidade sem par, a sua musicalidade única...apaixona-me. 
Sei bem que o dia é rico em efemérides, (até nasceu F. Pessoa), mas recordo bem o dia em que me senti tão triste, pois o vate não iria escrever outro poema. Quando entrei na aula de Literatura Portuguesa, os meus alunos disseram em coro: «Professora, morreu o seu Eugénio». E, eu, sempre contida, sorri mas quase chorei.

Ana








domingo, 10 de junho de 2018

10 de Junho



Portuguese American Journal



As Amoras

O meu país sabe as amoras bravas
no verão.      
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
    
                   Eugénio de Andrade, O Outro Nome da Terra