quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

As Palavras Interditas

Ana, 2023




Os Navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
Partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram-se nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.



Eugénio de Andrade in As Palavras Interditas, 1951

9 comentários:

  1. Lindíssima tua escolha !
    Bela poesia!
    beijos, ótimo fim de semana! chica

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  2. Um dos mais belos poemas portugueses...

    Num tempo gelado de cidades bombardeadas...

    Beijinhos, querida amiga.

    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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  3. Muito bem escolhido Ana.
    Transporta para a crueldade e terror da guerra que vigora e sabe-se lá onde irá parar.
    Quanto ao poeta, é o meu poeta de eleição, porque bem o entendo, porque de forma que parece ser tão simples, nos faz viver a profundidade da sua mensagem.
    Bom fim de semana, deixo um kandando amigo.

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  4. Também gosto da poesia de Eugénio Andrade e das suas "palavras interditas. Das palavras proibidas, mas ditas nas entrelinhas. As palavras de luta pela reconstrução da liberdade, que nos tem sido tão caras, e as palavras do amor.
    Estava saudosos de passar por aqui e ouvir os seus passos lá pela nossa casa!
    Beijinhos, Ana!

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  5. Dizemos e sentimos que Eugénio era grande
    mas ele é bem maior do que aquilo que dele dizemos
    e cada poema que lemos
    ampliam-se os nossos sentimentos da sua grandeza
    como me aconteceu agora mesmo ao ler o teu poema

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  6. Eugénio de Andrade a fazer-se ouvir em "Palavras Interditas",
    as quais sentimos no coração e na nossa sensibilidade. As que estão
    neste belo poema deixam entrever as que não são ditas. Um poeta
    que acompanha os tempos mesmo não estando por cá fisicamente.
    E também fala de amor.
    Adorei encontrá-lo aqui no "Sul Sereno", neste ano do seu Centenário.
    Bom domingo, querida Ana.
    Beijinhos
    Olinda

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  7. É sempre comovida que leio o Eugénio, poeta da minha preferência, a quem tanto devo, a quem a nossa literatura tanto deve. Que bom encontrá-lo aqui.
    Uma boa semana com muita saúde.
    Um beijo.

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