quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

E quando vive?

 

Jury Annenkov, 1918


Faltam alunos na sala. O Sol outonal doura, levemente, o ambiente interior. Uma suavidade na dureza dos dias. A calma, o receio e o entusiasmo do início do ensino secundário alargam o texto até à vila de Avis, aqui tão próxima, e levam, num voo rasante de pássaro deste Sul indomável, até ao silêncio pacífico e cheio do interior da Torre do Tombo, em Lisboa. Fernão Lopes é matéria dura para jovens de quinze anos pós-modernos! 
M. não está presente, a irmã mais nova está com covid19 - ela e a turma inteira, confinaram-se. Outros três lugares estão vazios, na pequena sala em que vinte e sete alunos se amontoam atrás das máscaras azuladas. Em anos anteriores, essa prótese ainda tinha laivos de adereço e moda. Agora não! Luta-se pela assepsia, desesperadamente.
O conhecimento encolheu. A Gramática perdeu-se, mesmo se a História da Língua ainda fascina alguns deste alunos de Ciências e Tecnologias. Desdobro-me para cativá-los, como a Raposa no Principezinho de Antoine de Saint-Éxupéry.




Subitamente, J. que tem um interesse habitual por História, não resiste a perguntar-me se já estive dentro da Torre do Tombo. Digo-lhe que sim, que por força de quatro anos da minha vida de estudos lá entrei e estive muitas vezes. Então, olha-me em silêncio e remata entre  a interrogação e uma ironia piedosa:
- E quando vive, professora?

Todo o dia pensei na interrogação arremessada por esta menina sábia e frágil. Que lição!

Ana

21 comentários:

  1. Interessante relato desses tempos que vivemos e com final instigante...Gostei de ler! Por vezes não conseguem entender como fazemos pra tanto fazer, parece nem vivemso,não é? beijos, chica

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  2. Pois é, Ana, é assim que as turmas se apresentam.
    Tantas horas que eu passei na Torre do Tombo, onde até tinha um número, como na Biblioteca Nacional de Lisboa.
    A pergunta da aluna é perspicaz e inteligente.
    Quando? Vamos vivendo.

    Beijos e dias com esperança.

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  3. Numa, talvez a única, prova oral de português o examinador mandou-me abrir o livro "ao calhas". Saiu-me a crónica de Fernão Lopes (O Cerco de Lisboa) e o texto foi lido com tal fluência que mais parecia ter sido eu o frequentador assíduo da Torre do Tombo...

    Quanto à sábia pergunta dessa frágil aluna, gostava de saber mais sobre a resposta que lhe darias...

    Beijos, querida "Raposa"

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  4. Realmente, é uma pergunta estranha na boca de uma jovem que deve gostar de ler autores mais maduros...
    Porém, a vida é assim -- é importante que se faça o que se gosta, porque não acho aliciante viver em perene ociosidade.
    O tempo de lazer tem mais sabor para quem trabalha...
    Dias felizes na preparação da sua festa familiar.
    Beijinhos
    ~~~~~

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  5. Vamos assim vivendo um dia atrás do outro, um de cada vez, na ânsia de que nos deixem viver.

    Belo relato!

    Beijinhos e tudo de bom!

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  6. Creio que à jovem, viver
    Não é o tempo de vida
    Vivido. É a apetecida
    Parte em que há prazer
    E diversões para o ser
    Deleitar-se, unicamente,
    Pois só assim o ser sente
    Haver vida e que enquanto
    Se trabalha não há encanto
    Ou nem vida, de repente...

    São conjecturas que o raciocínio de Ana, tenha sido esse. É minha crença. Abraço fraterno. Laerte.

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  7. J. fez a pergunta. E a professora Ana respondeu o quê? As crianças têm uma perspicácia tantas vezes inesperada... Mas gostei da apresentação que fez dos seus alunos. Estudar Fernão Lopes nem sempre é fácil, mas é muito instigante. Deve ser bom ter uma professora que gosta de cativar os alunos. Parabéns, minha Amiga.
    Um bom fim de semana.
    Cuide-se bem.
    Um beijo.

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  8. Que respondeste, minha amiga?

    Eu penso que quando se faz o que se gosta , o tempo que se lhe dedica é vida!

    E parabéns pela educadora que és.

    Te abraço com carinho, Aninhas

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  9. Um texto muito interessante!
    E é verdade que as crianças por vezes, tem perguntas que ficamos a pensar, na resposta adequada a dar.
    Gostei bastante do que li.
    Boa semana.
    Saúde e paz.
    Beijinhos
    :)

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  10. Na sequência da leitura deste seu belo texto, ocorreu-me que eu própria me julguei uma velha pós-moderna, em tempos... :)

    Um abraço, Ana!

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  11. O impacto negativo que a pandemia está a ter no ensino talvez não esteja a ser bem avaliada pela generalidade das pessoas e instituições, nomeadamente pelo ministério/governo.
    Mas ainda há professores que lutam para minimizar esse impacto e que ainda têm um tempinho para ir à Torre do Tombo... mas pouco tempo lhes resta para viver...
    Continuação de boa semana, amiga Ana.
    Beijo.

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  12. Muito sábia e certeira a pergunta da menina J.
    Como mãe que sou duma professora ( e irmã, e cunhada, e prima... parece que é de família...)
    entendo bem a questão.
    Gostei muito desta reflexão.

    Continuação de boa semana.
    Beijinhos
    MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

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  13. Adenda - Espero vê-la no dia 16 na minha CASA.

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  14. Na vida, temos ocupações que nos preenchem a vida
    de uma forma assoberbante. E essa tua aluna soube
    ler a situação. É a tal verdade na boca das
    crianças/adolescentes. Por vezes, vêm as coisas com
    uma clarividência espantosa.
    Bom fim de semana, querida Ana.
    Beijinhos
    Olinda

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  15. Olá, Ana!
    Espero que esteja bem.

    Votos de um Santo e Feliz Natal e Bom Novo Ano!

    Beijinhos.

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  16. Ana,
    cada vez estamos mais distantes uns dos outros e não temos tempo para conhecer a fundo o que está ao nosso redor, criar os tais laços.
    "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

    Sei que essa tua responsabilidade, cativa e habita no coração desses jovens!
    Viver é isso!

    Feliz Natal minha amiga!

    Um beijinho

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  17. Vertiginoso é o rumo a um lugar onde só o vento será raiz.

    Urge que a educação seja um momento perene de clarividência, presente todos os dias.

    Desejo-lhe um feliz Natal!

    Um beijo meu!

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