Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Talvez as rosas

 

Cá de casa - Ana


    Talvez as rosas nos ensinem a lição mais simples. Quarenta e dois graus, de mais um dia que ferve, rondam a casa branca que, quase meninos, sonhámos construir. Formigas, paradoxalmente sonhadoras, ousámos o ciclópico labor. Moldámos, no esforço, aquilo que ainda somos.
    Lá fora, tu consegues trabalhar... eu refugio-me na "fresca" da casa, como por aqui se diz. Vou lendo, lendo, lendo. 
    Maria Zambrano, a filósofa espanhola, pareceu antever este tempo, desde os finais da Segunda Guerra Mundial



    
    "A objectividade, enquanto durar o império da máscara, eclipsa-se, como se o homem não estivesse nesse nível vital em que a luz havia sido de toda a cultura ocidental." (p. 123). 
    Desde a primeira página nos é dito que a Europa está em decadência. Hoje, parece uma redundância vir aqui dizê-lo! 
    Laboras, com infinda paciência na regeneração dos instrumentos, sob um calor abrasador, mas aquilo que fazes e me vens mostrar como menino que espera um elogio, recorda-me bem de quem és! Ainda bem.


Cá de casa - Ana

    Talvez as rosas que sobrevivem no jardim, debaixo do estio, nos recordem aquilo que somos, apesar dos desatinos do mundo. Talvez ainda haja esperança.



sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Levantam, num voo rasante


                 Life on stump - Jacek Yerka




Levantam, num voo rasante,

pesados pássaros do Verão,

que o calor passado os impele

ao horizonte cinza do Levante...

Rodopiam, no chumbo matinal,

em círculos vagos, em diapasão,

aves majestosas astutas, sibilinas,

auguram um apocalipse constante!


Ana



sexta-feira, 25 de julho de 2025

44 anos

 


Story of love, Vladimir Kush

14
Brincas todo o dia com a luz do universo.
Subtil visitante, chegas na flor e na água.
És mais que este pequeno órgão claro que aperto
como um cacho em minhas mãos pelos dias.

A ninguém te pareces desde que te amo.
Deixa eu te deitar entre guirlandas amarelas.
Quem escreve teu nome com letras de fumo entre as estrelas do sul?
Ah deixa eu te lembrar como eras quando ainda nem existias.

De repente o vento uiva e golpeia minha janela fechada.
O céu é uma rede carregada de peixes sombrios.
Aqui vêm dar todos os ventos, todos.
Despe-se a chuva.

Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.
Só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal faz girar folhas escuras
e solta todas as barcas que à noite atracam no céu.

Estás aqui. Ah não me foges.
Responderás até o último grito.
Encolhe-te a meu lado como se tivesses medo.
Lépida uma vez uma sombra estranha percorreu teus olhos.

Agora, agora mesmo, pequena, trazes-me madressilvas,
e trazes ainda os seios perfumados.
Enquanto o vento triste galopa matando mariposas
eu te amo, e minha alegria morde tua boca de ameixa.

Quanto te doerá acostumares-te a mim,
à minha alma solitária e selvagem, ao meu nome que afastam.
Vimos tantas vezes a lamparina arder beijando nossos olhos
e sobre nossas cabeças desdobrarem-se os crepúsculos em leques gigantes.
Minhas palavras choveram em ti, acariciando-te.
Há tempos amei teu corpo de nácar ensolarado.
Até te vejo dona do universo.
Te trarei das montanhas flores alegres, campânulas,
avelãs escuras e cestas selvagens de beijos.

Quero fazer contigo
o que a primavera faz às cerejeiras.

Pablo NERUDA, Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, 14, 1924



44 anos de casamento


domingo, 20 de julho de 2025

Calema

 

Fontana dei Quattro Fiumi (Fonte dos Quatro Rios) - Roma - José Alves

Hei-de enfrentar teimosamente o Futuro.

Defenderei até ao fim a Verdade,

Porque a Justiça é o meu ideal mais duro,

Porque o meu peito traz consigo a Vontade!

Serei a criança, sorrirei às estrelas,

Porque existem coisas belas, hei-de defendê-las.

Ainda que me apontem o dedo em riste...

Irei dizer que a Vida ainda existe!

Calema, sob o verde das águas, cresce...

Abril já partiu e os homens hoje oraram,

Mas secretamente Setembro decresce...

No fulgor dos impérios que naufragaram.


Ana


Calema - Ondulação forte do marnas costas de África que causa forte rebentação.

(https://dicionario.priberam.org/calema)


Fonte dos quatro rios (Roma) -quatro rios mais importantes de diferentes continentes: o Nilo (África), o Danúbio (Europa), o Ganges (Ásia) e o Rio da Prata (Américas

sábado, 12 de julho de 2025

Às vezes, a ternura...

 

Foto: Sara Monteiro, 2025

Às vezes, a ternura

rebenta no azul,

acaricia o tempo

e voga no silêncio.

Às vezes, a doçura

ausente nesse Sul,

arrasta-se neste vento

 e voga no silêncio...


Ana