Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Expectativas e cortes


Manipulation Art, Erik Johansson

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.


Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...


Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!


Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...


Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.




JOSÉ RÉGIO
Poemas de Deus e do Diabo
(1925)

«deep cuts», Manipulation Art, Erik Johansson



19 comentários:

Edum@nes disse...

Com tantos cortes
São mesmo coisas do diabo
Governados por fartotes
Se não continuarem os cortes
Disse o outro, está o caldo entornado
Aquele que desertou para Bruxelas
E deixou o barco desgovernado
A deitar da boca para fora baboseiras
Anda agora todo emproado!

O poema é bom e as imagens são fantásticas.

Boa noite para você, amiga Ana Tapadas, um beijinho.
Eduardo.

Mar Arável disse...

... e já é tanto

Manuel Veiga disse...

Criar desumanidade - que maior glória!

beijo

São disse...

Um dos melhores poemas de Régio!

Abraço grande, minha amiga

Fê blue bird disse...

Amiga escolheste o poema perfeito e as imagens certas para ilustrar o que nos está a acontecer.


beijinho



Bípede Implume disse...

Querida Aninha
Acho que já reparaste que parei, por um tempo, de me insurgir.
Há quem o faça melhor do que eu.
Contudo continuo a olhar este despudor, esta desumanidade com tal espanto que me faltam as verdadeiras palavras. Aquelas que eu quereria mesmo dizer.
Vou-me socorrendo das tuas. Sempre certas.
Beijinho e bom fim de semana
Isabel

Zilani Célia disse...

OI ANA!
UM TEXTO MARAVILHOSO.
ABRÇS
http://zilanicelia.blogspot.com.br/

. intemporal . disse...

.

.

. é impressionante a intemporal idade da Poesia . que por isso se quer mayor e para sempre .

.

. um bom fim.de.semana .

.

. um beijo meu .

.

.

Mel de Carvalho disse...

querida Ana,

Régio foi, porventura, dos primeiros autores que li. fi-lo num tempo em que voluntariamente me dispus a reabrir uma biblioteca fechada há alguns anos e contendo umas dezenas de livros empoeirados. fi-lo para "matar" as horas de desanimo em que esperava que outros se motivassem a vir requisitar os ditos...
e, nas longas noites de espera, eles não me deixavam só, fieis amigos: Régio convivia com Zola e Zola com Redol e Redol com Nemésio e por ai adiante...

e, quando alguém me questionava sobre a validade "inglória" da minha teimosia em manter aberta uma porta a que quase ninguém batia, não raras vezes me vinha à memória este poema e "adolescia" mais convicta da força da palavra.

Régio, sempre!
até que em mim sobre apenas e só "Uma Gota de Sangue" :)

beijo, querida Ana, obrigada.

Maria Luisa Adães disse...

José Régio e eu, maria luisa, que bom seria escrever como ele e dizer, há quanto tempo não tinha o gosto de a encontrar e de lhe escrever.

Linda a sua escolha! Abraço grande,

Mª. luísa

Maria Luisa Adães disse...

E eu tenho dito ou disse... muitas vezes, José Régio
e aprendi que "não vou por aí"...

Maria Luísa

Maria Luisa Adães disse...

Se lembra de mim?

M. Luísa

Edum@nes disse...

Para todos vós eu digo bom dia
Hoje, não quero de tristezas falar
Transmito-vos a minha alegria
Por neste mundo convosco estar!

Bom domingo para você,
amiga Ana Tapadas, um beijo
Eduardo.

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Minha querida Ana

Um poema que está tão actual, infelizmente o tempo passa e nada muda.

Um beijinho com carinho
Sonhadora

Jorge disse...

A delicodoçura desse convidativo caminho insiste na mesma receita, sabendo que pode haver outras...
Abraços,
Jorge

Fá menor disse...

Gosto, gosto!

Eu também sou um pouco do contra.

bjinhs

Nilson Barcelli disse...

Um poema magistral, com um final de Mestre.
É sempre bom reler poemas destes.
Beijo, querida amiga Ana.

Luma Rosa disse...

Wow!! Que poema forte!!
Obrigada por compartilhar, Ana! Eu não o conhecia!
Beijus,

Margarida disse...

Gosto muito, muito de José Régio. Percebi a mensagem, mas não caia nesse desalento. Um dia Portugal gira, é essa a minha convicção.


Beijinhos com saudades,
Sara