Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Europa

 

Adolfo Casais Monteiro



Andam corridos os dias, como a brisa que varre a Ibéria. Do longe, apenas os ecos da guerra como uma hiena estranha que gritasse dos confins da minha planície. O tempo esgueira-se como uma sombra fugidia que se aquieta nas noites breves.
Temos o dever de sair dos pequenos mundos e das fechadas conchas em que nos abrigamos. Chego a olhar com desdém os poemas do "eu" que, agora, preenchem os meus dias de trabalho. O individualismo pós-Moderno não me preenche esteticamente, jamais teve essa capacidade. 
Ocorre-me, então, que alguns dos mais construídos poetas, teóricos e valorosos vultos da cultura portuguesa sempre ficaram excluídos de todos os programas escolares, mesmo os universitários.
Assim, remando contra essas marés, aqui deixo um poeta extraordinário para os dias que habitamos - Adolfo Casais Monteiro.

(excerto)



III

Na erma solidão glacial da treva

os que não morreram velam.


Em vagas sucessivas de descargas

A morte ceifou os nossos irmãos.


O medo ronda,

o ódio espreita.

Todos os homens estão sozinhos.


A madrugada ainda virá?


Vão caindo um a um na luta sem trincheiras,

e a noite parece que não terá nunca madrugada,

mas cada gota de sangue é agora semente de revolta,

da revolta que varrerá da face da terra

os sacerdotes sinistros do terror.

A revolta a florir em esperança

dos braços e das bocas que ficaram...


A traição ronda,

A morte espreita.


Uma comoção de bandeiras ao vento...

Clarins de aurora, ao longe...


Os que não morreram velam.


IV

Eu falo das casas e dos homens,

dos vivos e dos mortos:

do que passa e não volta nunca mais...

Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,

ah, não me venha com teorias!

eu vejo a desolação e a fome,

as angústias sem nome,

os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.

E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,

uma insignificante parcela de tragédia.

Eu, se visse, não acreditava.

Se visse, dava em louco ou em profeta,

dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,

— mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.

Olho num pasmo sem limites,

e fico sem palavras,

na dor de serem homens que fizeram tudo isto:

esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,

esta lama de sangue e alma,

de coisa e ser,

e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,

se o ódio sequer servirá para alguma coisa...



Deixai-me chorar — e chorai!

As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,

de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,

e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,

por momentos será nosso um pouco de sofrimento alheio,

por um segundo seremos os mortos e os torturados,

os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,

seremos a terra podre de tanto cadáver,

seremos o sangue das árvores,

o ventre doloroso das casas saqueadas,

— sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...


Eu não sei porque me caem lágrimas,

porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,

eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,

eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,

eu que estou na minha casa sossegada,

eu que não tenho a guerra à porta,

— eu porque tremo e soluço?


Quem chora em mim, dizei — quem chora em nós?


Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:

As ruas são ruas com gente e automóveis,

Não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,

e a miséria é a mesma miséria que já havia...

E se tudo é igual aos dias antigos,

Apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,

eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,

sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,

sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,

uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...


“Europa” de Adolfo Casais Monteiro (Confluência, s.d.) é um poema premonitório. Foi lido aos microfones da BBC, na emissão de língua portuguesa, a 23 de Maio de 1945, por António Pedro. Era o fim da guerra europeia e havia uma grande esperança – a de que, depois da tragédia terrível, que tinha deixado o velho continente exangue, seria possível lançar as bases de uma paz duradoura. Como disse José Augusto Seabra, no prefácio à edição de 1991 (Nova Renascença): “Pela voz forte e timbrada de um intelectual então emigrado, António Pedro, esse poema, da autoria de Adolfo Casais Monteiro, um dos nossos mais corajosos poetas resistentes à ditadura, acordou em quantos o escutavam a esperança de que também para Portugal a hora da liberdade iria soar, na nova Europa que se erguia sobre o sangue e os escombros decorrentes da criminosa aventura totalitária hitleriana”.

                                                                                                                           

Guilherme d' Oliveira Martins



António Pedro, 1940


16 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

«Apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,»

Nasci, nesse ano, em que isto foi escrito.
Agora,
quem m´dera
chegada a hora
da
"Jangada de Pedra"

Maria João Brito de Sousa disse...

Adolfo Casais Monteiro contava-se entre os amigos mais íntimos do meu avô, António de Sousa, também ele Presencista. Não guardo grande memória física dele, por isso é bem possível que tenha frequentado a casa do meu avô no Porto ou em Coimbra, antes de eu ter nascido.

"IV
Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais..."...


Um beijo, Ana!

J.P. Alexander disse...

No lo conocía pero es un genial poeta y sus versos estan vigentes mas que nunca. Te mando un beso.

São disse...

Graças , minha amiga, por teres publicado este fortissimo poema de Adolfo Casais Monteiro - muito bem ilustrado pela pintura de António Pedro.

Infelizmente, poderia ter sido escrito hoje.

As minhas lágrimas correm por todas as vítimas destas guerras de interesses cruzados.

No Yémen morre-se há nos de bombas e e de fome ... e nem uma palavra sobre essa tragédia inominável na comunicação social.

Te abraço, Ana.

Elvira Carvalho disse...

Um poema que não conhecia e que me impressionou pela sua atualidade.
Abraço, saúde e boa semana

chica disse...

Parece ter sido escrito nos dias de hoje! Lindo poema!
beijos, linda semana e tudo de bom,chica

Clayci disse...

Eu realmente não conhecia e achei impressionante

Clayci

Graça Pires disse...

Adapta-se tão bem aos dias de hoje este magnífico poema de Adolfo Casais Monteiro.
"A traição ronda,
A morte espreita."
Quem chora em mim, quem chora em nós? Tanta teoria que anda por aí a tentar explicar o inexplicável, a tentar justificar o sofrimento e a perda das vidas humanas. Como?
Uma boa semana com muita saúde, minha Amiga Ana.
Um beijo.

Malindha Erba disse...

Me duele ver así a Europa

Jaime Portela disse...

Os poetas foram grandes resistentes da ditadura que nos assolou durante décadas.
Casais Monteiro é um exemplo. Dos bons. Este poema parece ter sido escrito recentemente...
Obrigado pela partilha.
Boa semana, amiga Ana.
Um abraço.

João Santana Pinto disse...

É estranho ver e ler algo tão belo e ficar triste e de certa forma com aquele desanimo que te invade por saber que é fruto da realidade, reflexo da vivência e que passado tanto tempo qualquer avanço parece tão pouco ou mesmo um retrocesso.
Um beijinho para ti e muito obrigado por partilhares as tuas escolhas perfeitas, a tua arte e por seres a pessoa bonita que és

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

Parece que o poema de Adolfo Casais Monteiro, foi escrito agora neste momento.
Uma postagem excelente, que muito gostei de ler.
Desejo uma boa semana com saúde e harmonia.
Um beijo
:)

Majo Dutra disse...

Um grito do poeta pela paz e liberdade!

Não podendo acudir a todos os casos conflituosos do mundo, estou orgulhosa
da Europa pelo modo como tem conduzido a defesa e apoio a um país vizinho
que lhe implorou auxílio, fazendo frente ao monstro da guerra...

É muito oportuna a publicação deste poema icónico, quando forem descobertas
tantas atrocidades praticadas nesta guerra.
A Europa ajuda, privando-se de aquecimento e expondo-se às bombas atómicas.

Beijinhos, Ana.
~~~~~~

Manuel Veiga disse...

excelente. muito bem lembrado.

beijo, amiga

Fá menor disse...

Bem pertinente. Não conhecia.

Eu também
"Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras"


Beijinhos, amiga!

zaratustra disse...

descobrir o blogue e dar logo de caras com Europa de Adolfo Casais Monteiro é simplesmente fantástico
Vou passear por aqui mais vezes