Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

E quando vive?

 

Jury Annenkov, 1918


Faltam alunos na sala. O Sol outonal doura, levemente, o ambiente interior. Uma suavidade na dureza dos dias. A calma, o receio e o entusiasmo do início do ensino secundário alargam o texto até à vila de Avis, aqui tão próxima, e levam, num voo rasante de pássaro deste Sul indomável, até ao silêncio pacífico e cheio do interior da Torre do Tombo, em Lisboa. Fernão Lopes é matéria dura para jovens de quinze anos pós-modernos! 
M. não está presente, a irmã mais nova está com covid19 - ela e a turma inteira, confinaram-se. Outros três lugares estão vazios, na pequena sala em que vinte e sete alunos se amontoam atrás das máscaras azuladas. Em anos anteriores, essa prótese ainda tinha laivos de adereço e moda. Agora não! Luta-se pela assepsia, desesperadamente.
O conhecimento encolheu. A Gramática perdeu-se, mesmo se a História da Língua ainda fascina alguns deste alunos de Ciências e Tecnologias. Desdobro-me para cativá-los, como a Raposa no Principezinho de Antoine de Saint-Éxupéry.




Subitamente, J. que tem um interesse habitual por História, não resiste a perguntar-me se já estive dentro da Torre do Tombo. Digo-lhe que sim, que por força de quatro anos da minha vida de estudos lá entrei e estive muitas vezes. Então, olha-me em silêncio e remata entre  a interrogação e uma ironia piedosa:
- E quando vive, professora?

Todo o dia pensei na interrogação arremessada por esta menina sábia e frágil. Que lição!

Ana

21 comentários:

chica disse...

Interessante relato desses tempos que vivemos e com final instigante...Gostei de ler! Por vezes não conseguem entender como fazemos pra tanto fazer, parece nem vivemso,não é? beijos, chica

CÉU disse...

Pois é, Ana, é assim que as turmas se apresentam.
Tantas horas que eu passei na Torre do Tombo, onde até tinha um número, como na Biblioteca Nacional de Lisboa.
A pergunta da aluna é perspicaz e inteligente.
Quando? Vamos vivendo.

Beijos e dias com esperança.

Rogério G.V. Pereira disse...

Numa, talvez a única, prova oral de português o examinador mandou-me abrir o livro "ao calhas". Saiu-me a crónica de Fernão Lopes (O Cerco de Lisboa) e o texto foi lido com tal fluência que mais parecia ter sido eu o frequentador assíduo da Torre do Tombo...

Quanto à sábia pergunta dessa frágil aluna, gostava de saber mais sobre a resposta que lhe darias...

Beijos, querida "Raposa"

J.P. Alexander disse...

Lindo relato te mando un beso

Majo Dutra disse...

Realmente, é uma pergunta estranha na boca de uma jovem que deve gostar de ler autores mais maduros...
Porém, a vida é assim -- é importante que se faça o que se gosta, porque não acho aliciante viver em perene ociosidade.
O tempo de lazer tem mais sabor para quem trabalha...
Dias felizes na preparação da sua festa familiar.
Beijinhos
~~~~~

Fá menor disse...

Vamos assim vivendo um dia atrás do outro, um de cada vez, na ânsia de que nos deixem viver.

Belo relato!

Beijinhos e tudo de bom!

SILO LÍRICO - Poemas, Contos, Crônicas e outros textos literários. disse...

Creio que à jovem, viver
Não é o tempo de vida
Vivido. É a apetecida
Parte em que há prazer
E diversões para o ser
Deleitar-se, unicamente,
Pois só assim o ser sente
Haver vida e que enquanto
Se trabalha não há encanto
Ou nem vida, de repente...

São conjecturas que o raciocínio de Ana, tenha sido esse. É minha crença. Abraço fraterno. Laerte.

alfacinha disse...

Que relato belo .Gostei de ler
Abraço

Graça Pires disse...

J. fez a pergunta. E a professora Ana respondeu o quê? As crianças têm uma perspicácia tantas vezes inesperada... Mas gostei da apresentação que fez dos seus alunos. Estudar Fernão Lopes nem sempre é fácil, mas é muito instigante. Deve ser bom ter uma professora que gosta de cativar os alunos. Parabéns, minha Amiga.
Um bom fim de semana.
Cuide-se bem.
Um beijo.

São disse...

Que respondeste, minha amiga?

Eu penso que quando se faz o que se gosta , o tempo que se lhe dedica é vida!

E parabéns pela educadora que és.

Te abraço com carinho, Aninhas

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...


Um texto muito interessante!
E é verdade que as crianças por vezes, tem perguntas que ficamos a pensar, na resposta adequada a dar.
Gostei bastante do que li.
Boa semana.
Saúde e paz.
Beijinhos
:)

Maria João Brito de Sousa disse...

Na sequência da leitura deste seu belo texto, ocorreu-me que eu própria me julguei uma velha pós-moderna, em tempos... :)

Um abraço, Ana!

isabella kramer - veredit disse...

Grandios und berührend!

Ich umarme dich!

Jaime Portela disse...

O impacto negativo que a pandemia está a ter no ensino talvez não esteja a ser bem avaliada pela generalidade das pessoas e instituições, nomeadamente pelo ministério/governo.
Mas ainda há professores que lutam para minimizar esse impacto e que ainda têm um tempinho para ir à Torre do Tombo... mas pouco tempo lhes resta para viver...
Continuação de boa semana, amiga Ana.
Beijo.

Mariazita disse...

Muito sábia e certeira a pergunta da menina J.
Como mãe que sou duma professora ( e irmã, e cunhada, e prima... parece que é de família...)
entendo bem a questão.
Gostei muito desta reflexão.

Continuação de boa semana.
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

Mariazita disse...

Adenda - Espero vê-la no dia 16 na minha CASA.

Olinda Melo disse...


Na vida, temos ocupações que nos preenchem a vida
de uma forma assoberbante. E essa tua aluna soube
ler a situação. É a tal verdade na boca das
crianças/adolescentes. Por vezes, vêm as coisas com
uma clarividência espantosa.
Bom fim de semana, querida Ana.
Beijinhos
Olinda

Fá menor disse...

Olá, Ana!
Espero que esteja bem.

Votos de um Santo e Feliz Natal e Bom Novo Ano!

Beijinhos.

J.P. Alexander disse...

Te deseo una feliz navidad

Fê blue bird disse...

Ana,
cada vez estamos mais distantes uns dos outros e não temos tempo para conhecer a fundo o que está ao nosso redor, criar os tais laços.
"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."

Sei que essa tua responsabilidade, cativa e habita no coração desses jovens!
Viver é isso!

Feliz Natal minha amiga!

Um beijinho

. intemporal . disse...

Vertiginoso é o rumo a um lugar onde só o vento será raiz.

Urge que a educação seja um momento perene de clarividência, presente todos os dias.

Desejo-lhe um feliz Natal!

Um beijo meu!