Teatro de Dionísios, Atenas |
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da
sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que
desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à
espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas
cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e
moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse
a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.
Herberto Hélder.
6 comentários:
Que de tudo o que o grego
dizia o poeta ele tinha
temos nós também
espelhada a paixão
no ritual da "carvalhesa"
"ponham muito alto a música e que eu dance,"
Olá, a qualidade da paixão no tempo grego foi única, hoje a paixão vai daqui até ali, passa pelo acolá, não! não...pode morrer gregamente, ninguém pode, perdeu-se a aura da paixão, não mais existe, a paixão pela fruta comida ainda viva, mastiga-se e joga-se fora, é o mundo global que nos obrigam a viver sem paixão.
Continuação de bom domingo e feliz semana,
AG
Sou um dos membros malditos
Dessa falsa sociedade
Que, baseada nos mitos,
Pode roubar à vontade.
António Aleixo
O Herberto Helder é sempre espantoso em tudo o que escreveu...
Foi bom encontrá-lo aqui, Ana.
Uma boa semana.
Um beijo.
Todas as paixões são belas e efémeras
vagarosos instantes
Deste pais cidadão,
mas, não sei mentir
de véspera reflexão
para bem poder agir!
Para não me enganar,
sabendo de ante mão
em quem iria votar
para o bem da Nação!
Tenha uma boa noite amiga Ana.
Gosto muito deste poema, sempre gostei.
Obrigado, Ana, por me reavivar a memória.
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