in, Chão da Areia |
«Sou filho de camponeses, passei a
infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que prolongam o Alentejo e, desde
pequeno, de abundante só conheci o sol e a água. Nesse tempo, que só não foi de
pobreza por estar cheio do amor vigilante e sem fadiga de minha mãe, aprendi
que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os meus
versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciaram-se
para dar corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz. As minhas raízes
mergulham desde a infância no mundo mais elementar. Guardo desse tempo o gosto
por uma arquitectura extremamente clara e despida, que os meus poemas tanto se
têm empenhado em reflectir; o amor pela brancura da cal, a que se mistura
invariavelmente, no meu espírito, o canto duro das cigarras; uma preferência
pela linguagem falada, quase reduzida às palavras nuas e limpas de um
cerimonial arcaico - o da comunicação das necessidades primeiras do corpo e da
alma. Dessa infância trouxe também o desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas
formas é sempre uma degradação; a plenitude dos instantes em que o ser mergulha
inteiro nas suas águas, talvez porque então o mundo não estivesse dividido, a
luz cindia (dividida), o bem e o mal compartimentados; e, ainda, uma
repugnância por todos os dualismos, tão do gosto da cultura ocidental,
sobretudo por aqueles que conduzem à mineralização do desejo num coração de
homem. A pureza, de que tanto se tem falado a propósito da minha poesia, é
simplesmente paixão, paixão pelas coisas da terra, na sua forma mais ardente e
ainda não consumada.»
Eugénio de Andrade
As palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
Mais um ano lectivo chega ao seu final. Turbulento. O meu labor é o da palavra. Como Eugénio, acredito nessa pureza inicial da Língua. Mesmo quando, em anos passados, o meu trabalho aconteceu em gabinete - coisa que abomino, mas a que não pude fugir algumas vezes - o poema acima servia de base, na secretária, ao meu trabalho diário. Era um lema, pautava cada dia. É o meu poema. Aliás, Eugénio é a minha alma. Mansa e apaixonada. Calema, diria a minha amiga Isabel. E...tantos são os Poetas que cruzam o meu caminho, a minha vida! A todos amo, mas este é singular pela emoção estética que me desencadeia. A sua fímbria de uma simplicidade sem par, a sua musicalidade única...apaixona-me.
Sei bem que o dia é rico em efemérides, (até nasceu F. Pessoa), mas recordo bem o dia em que me senti tão triste, pois o vate não iria escrever outro poema. Quando entrei na aula de Literatura Portuguesa, os meus alunos disseram em coro: «Professora, morreu o seu Eugénio». E, eu, sempre contida, sorri mas quase chorei.
Ana