Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Que importa o Calendário?

Wikimédia

É na fragilidade deste lugar que havemos de viver. Não sei se teremos vagos momentos de felicidade, mas o principio da incerteza acompanhará os nossos passos. Heisenberg equacionará, ainda, o correr dos dias...todavia, que importa? Estaremos aqui, realidade aparente, pequenos seres perenes de grandes sonhos. Recomeçaremos as vezes necessárias. Faremos voos rasantes até ao limite do horizonte.
O Amanhã é a Promessa.
Assim será, meus amigos.

Ana


domingo, 20 de dezembro de 2015

Paz

Neiva Passuello


Que a Paz desça sobre a Humanidade!


BOAS FESTAS.


terça-feira, 10 de novembro de 2015

JUSTITIA MATER

Vladimir Kush


Nas florestas solenes há o culto
Da eterna, íntima força primitiva:
Na serra, o grito audaz da alma cativa,
Do coração, em seu combate inulto:

No espaço constelado passa o vulto
Do inominado Alguém, que os sóis aviva:
No mar ouve-se a voz grave e aflitiva
Dum Deus que luta, poderoso e inculto.

Mas nas negras cidades, onde solta
Se ergue, de sangue mádida, a revolta,
Como incêndio que um vento bravo atiça,

Há mais alta missão, mais alta glória:
O combater, à grande luz da história,
Os combates eternos da Justiça!


Antero de Quental



 Nenhum homem é por natureza escravo.
Ζήνων ὁ Κιτιεύς
(Zenão de Cítio, séc. IV A.C.)

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Ajuda (BA)

«site» oficial, BA

Olho as mesmas paredes, róseas das eras e de luxos antigos. A Teresa já não está por ali, talvez pode as suas roseiras na casa solitária e bela que ergueu para a aposentação. Sem filhos, mulher dos livros raros, cordial e vinda de África, imagino-a de sorriso aberto e ar despachado, magra e de saquinho enfiado no braço - como só um certo tipo de donas consegue fazer - a olhar para este friso de não académicos, senhores de enfatuado vazio e esgares de conveniência.
Andei por ali nos anos noventa, peito cheio de esperança, mas visão clara da circunstância em que aquelas portas se me abriram. Sentia-me como no interior de um templo de rara imponência, habitado por criaturas vagas e sábias que se deixavam vislumbrar em salas que nunca pisei. Uma paz de crente que poderia ter sido, mas sempre os imperfeitos humanos me fizeram um apelo inegável. Dizer «não» pode ser um desígnio.

Olho, chocada, este friso de homens e de mulheres que, parece, irão governar o que resta do meu país...que fazem, neste lugar?

Lá atrás, a Teresa traz-me a tradução manuscrita do meu homem do século XVII e esgueiro-me no tempo.
O templo foi profanado.

Ana


terça-feira, 29 de setembro de 2015

Tempo




Eugénio Jorge


O tempo segue na sua corrida infinda,
Rumo ao tempo que resta, ainda...






sábado, 1 de agosto de 2015

Já te falei





Já te falei do rosto amarelecido dos velhos? Que aguardam eles, neste país tisnado pelo sol inclemente e ressequido? 
Já te falei dos jovens que partem e desses outros que desesperam entre a lassidão e a falta de horizonte? Porém, vasta é a planura e extenso o areal...
Já te falei das mulheres que se desdobram fingindo, num sorriso morno, que a angústia não as assola?
Já te falei dos homens que caminham envergonhados, ombros descaídos, carregando o fardo de cada dia sem esperança?
Não te mintas. Não te escondas por detrás dos escuros óculos deste Verão!
Eu vou de luto e semeio, ainda, essa vaga esperança de um dia melhor. Só o tempo me foge, escasso...

Ana



terça-feira, 7 de julho de 2015

Orografias


Don Hong - Oai




Diferentes são os dias se os virmos deste lado. Percorremos recantos da memória e sonhos de infinito. Caminhos absortos fechados neste tempo. Casulo informe sem esperança de voo. Que te importam as águas especulares? Imagem é essa construção etérea e íntima. A ela te prendes na infinda jornada. O Verão pesa como um deserto ancestral. Voas e mergulhas ou deslizas ainda? Na tarde o silêncio lê a tua sina...




Don Hong-Oai


Ana

domingo, 5 de julho de 2015

O Rio

Grécia, José Alves



O poema omnipotente,
como rio mítico,
barbudo,
de cartucheira à bandoleira,
vem pela rua abaixo a buzinar
enfadando as amantes.
E o poeta
por que te apaixonaste aos dezoito
já não existe,
pois existir quer dizer
tenho casa na rua Kypséli
vá visitar-me no fim-de-semana
ou apresento-lhe a minha esposa.
Há uns tipos, em altos estrados,
a fazerem truques com lenços coloridos,
como outrora os charlatães
que vinham de carroça
e te tiraram o dente são
por dois taleres.


 Jenny Mastoráki (Poeta da não violência)
Grécia (n. 1949),
to soi, kedros, 1978.

tradução de Manuel Resende



sábado, 27 de junho de 2015

Dies Irae

Alto Alentejo, José Alves


"A não-violência não consiste em renunciar a toda luta real contra o mal. A não-violência, tal como eu a concebo, empreende uma campanha mais activa contra o mal que a Lei de Talião, cuja natureza mesma traz como resultado o desenvolvimento da perversidade. Eu levanto, frente ao imoral, uma oposição mental e, por conseguinte, moral. Trato de amolecer a espada do tirano, não cruzando-a com um aço mais afiado, mas defraudando a sua esperança ao não oferecer resistência física alguma. Ele encontrará em mim uma resistência da alma, que escapará do seu assalto. Essa resistência primeiramente o cegará e em seguida o obrigará a dobrar-se. E o facto de dobrar-se não humilhará o agressor, mas o dignificará... ", M. GANDHI


Mediterrâneo, José Alves



Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!

Miguel Torga, in Cântico do Homem





quinta-feira, 18 de junho de 2015

Exames...


Jose Luís Cano

BACH SEGÓVIA GUITARRA

A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia

Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra

A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada

Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa

Por companheira tenho
A voz da guitarra

E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada

E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar
A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Geografia





Leio Sophia. Quieto aconchego da alma. A quietude de laborar na Literatura.

(Belo poema, num exame de Português.)


sexta-feira, 29 de maio de 2015

Na orla do mar


Mar Egeu, José Alves


Na orla do mar,
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
- e mora, secreto,
intenso, solar,
todo o meu desejo -
aí vou colher
a rosa e a palma.
Onde a pedra é flor,

onde o corpo é alma.

                                         Eugénio de Andrade

«Como são deles as palavras...»

John William Godward

«Mas a angústia que me habita, a violenta redescoberta da morte, que eu acabo de fazer, tornam-me estranha esta cidade, separam-ma dos meus olhos vazios, venho de luto, o meu pai morreu.» 
                                                                                                                                                                                            Vergílio Ferreira, Aparição




quarta-feira, 29 de abril de 2015

E...

John William Godward


Em plena Primavera, surgem vendavais súbitos e o pior de todos é o luto. 
Em breve voltarei...




domingo, 12 de abril de 2015

Fé na Humanidade





Sebastião Salgado

« “Tinha perdido toda a fé na humanidade”, confessou Salgado em várias ocasiões. Depois de Trabalhadores – Uma arqueologia da Era Industrial, terminado em 1993 e Êxodos (Editorial Caminho), de 2000, dois trabalhos, entre outros, de grande dureza, o fotógrafo sentiu-se “destruído”. 


Sebastião Salgado

Durante anos, Salgado manteve-se distante da máquina fotográfica e quis voltar à terra onde nasceu. Deparou-se então com a erosão e desflorestação de uma floresta outrora fértil, que havia alimentado e sustentado a família durante a infância. 





O “Instituto Terra” fundado em 1998, regenerou um ecossistema de quase dois mil hectares, com a plantação de quatro milhões de sementes. 



Sebastião Salgado

Lélia, a esposa de Salgado que sempre acompanhou e apoiou o fotógrafo de 71 anos, teve a ideia de replantar árvores e trazer a vida de volta ao vale familiar. 



Na zona de Rio Doce, em Aimorés, no Estado brasileiro de Minas Gerais, Salgado e a família combateram os efeitos nefastos do homem sobre a terra e começaram por cultivar mais de 300 espécies diferentes de árvores. A implantação desta ideia regenerou todo o ecossistema do local e trouxe de volta a Mata Atlântica então arruinada. » (Fonte: RTP)





Sebastião Salgado

Página oficial:  http://www.amazonasimages.com/



A não perder!


Na introdução de Êxodos, este Economista de formação escreveu: "Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. Há diferenças de cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reações das pessoas são semelhantes. Pessoas fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras, adaptam-se a situações extremas…". (Wiki)


domingo, 29 de março de 2015

As arestas

Alto Alentejo, José Alves


A erosão que descai
por debaixo desta realidade
tão frouxa
tão roxa
será limada
pela madrugada
de dias claros
Então o olhar
focará cada pétala
tão quieta
neste mar
que náufrago se vai

Ana


Alto Alentejo, José Alves



Por estes dias, sejam felizes, meus amigos!



Alto Alentejo, José Alves


quarta-feira, 25 de março de 2015

«O grande desastre aéreo de ontem»

Mediterrâneo, José Alves



«Para Cândido Portinari
Menino com carneiro - Candido Portinari
«Menino com carneiro», 1953 - Portinari


Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.»


                                                                                            Jorge de Lima (1893-1963)



Alpes franceses, José Alves




terça-feira, 24 de março de 2015

Deixarei os jardins a brilhar com os seus olhos

Cá de casa, José Alves


Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos : hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.

Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.

Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a dor que me leva
aos precipícios de agosto, a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas de ar
palpitando fechado no espelho. É a estação dos planetas.
Cada noite é um abismo atómico.


E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Batem em mim as pancadas do pedreiro
que talha no cálcio a rosa congenital.
A carne, sufocam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.


Herberto Helder
Fonte: Instituto Camões

sábado, 21 de março de 2015

Como felino...

Alto Alentejo, José Alves

Lá fora a primavera assoma tímida. Pequenas alvas flores cobrem a planície, dir-se-ia que a neve desceu afoita, mas uma leve brisa vinda do Norte levanta um doce aroma e sabemos, então, que o branco manto é tecido na ternura de dias ainda por vir. 
Deambulamos por aqui, horizonte largo e céu apocalíptico. Tempo necessário à trovoada que não chega. Como felino, lince que se esgueira entre giestas, sei que não virá. 
Esta não era a Primavera prometida. A chuva há três meses não fecunda este chão. Os tempos são austeros. Não me lembro de dias assim. Um faz-de-conta apoderou-se dos homens que correm sem rumo, numa pressa infinda e desesperada que não posso comungar. O meu é o horizonte estendido que se abre, lento e decidido, no caminho da esperança renovada.


Ana

sexta-feira, 20 de março de 2015

«Como uma flor vermelha»

«Jardim de Giverny», Monet Vetor


À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.


Sophia de Mello Breyner Andresen,

Obra Poética I


                                     Que a Primavera vos seja suave, mas renovadora!

quarta-feira, 18 de março de 2015

«Quem decifra o código?»

Museu do Bardo, Tunes, Tunísia



(Haicais)
17
Um verso livre
esta é a nossa casa


18
Não consigo pegar o que me dizes
a erva agarra-se às paredes

19
Entre nirvana e catarse
o inesperado


20
Tira os sapatos antes de entrar
no umbral do templo do coração


                                     Youssef Rzouga, Poeta da Tunísia

Museu do Bardo, Tunes, Tunísia

"
...nós somos pássaros migradores,
só para voar como deve ser em
forma de um coração gigante,
de baixo e alto
e no sentido inverso dos ponteiros
de um relógio,
só para ter a possibilidade
de compor outra canção paralela
ao comboio rápido.
Dó, ré, mi, fá, sol!...."



Youssef Rzouga, Poeta da Tunísia



Porta tradicional, Tunísia (google)

QUEM DECIFRA O CÓDIGO?

      "Eu irei..."
     aqui desde a mais remota antiguidade
     tudo me parece velho
     o alter ego
     o coração e seus arredores
     a cabeça
     e o que parece muito amigo
     quem decifra o código?
     Estas palavras já foram felizes
     em algum lugar

     Algo meu
     não compartilho contigo
     não digo a ninguém
     é a última coisa que se perde
     entre o arco-íris e o Arco do Triunfo
     tudo se perde
     um olhar carregado de tristeza
     um ciclo de raiva cega
     tudo gira
     ao redor da capa de ozónio
     a terra a cabeça etc...

     Entre o alfa e o ómega
     tudo se perde
     um suposto amigo
     uma rosa
     eu mesmo Youssef Rzouga
     todos até Victor Hugo
     quem decifra o Código?
     Estas palavras tornarão
     a alegrar outros lugares

     "Eu irei..."
      em busca de outro "abri.."
      um labirinto me sorri
      todos vivem sem abrigo
      entre Romeu e Julieta
      há um falso testemunho
      uma natureza morta
      Desde o umbigo é todo o universo
      quem decifra o código?

      "Eu irei..."
      tudo me intriga
      o alter ego
      o silêncio dos medíocres
      a bondade de um tal Youssef Rzouga
      tudo...

      "Eu irei..."
      não posso viver no passado
      estas palavras deverão alegrar
      outros lugares

    tradução/espanhol/lilian reinhardt



                                    Youssef Rzouga, Poeta da Tunísia





sexta-feira, 13 de março de 2015

Mandamentos

Jacques-Louis David, A morte de Sócrates


        Não questiones, que te oferecem cicuta.





Pirâmides no Sudão, Álvaro Figueiredo



Não acredites em lugares comuns, olha as pirâmides do Sudão.


Deus Atum - Egipto




Olha o Deus Atum, nas ruínas da Humanidade anterior.



Arte etrusca, Itália



Não te apresses, que a nova Era medieval assoma no horizonte.



Sudão, Álvaro Figueiredo



                                     Cómodos silêncios se instalam.



(Existem mais de duzentas pirâmides no Sudão.)


sábado, 21 de fevereiro de 2015

A música das esferas...



Inma Valderas, «Las nubes son pintoras»


A luz suave desta madrugada traz o eco sereno da Primavera por vir. Ânsias  de jardim, desejos de brisa cálida nesse rumor das tardes longas espreguiçadas sobre a planície. Não creias na cacografia que se instala sobre nuvens passageiras, que a terra já arfa seu Março. 
Nas noites mornas de breu, escutaremos a música das esferas que só o quieto silêncio nos dá. Pautas celestes que o Arquitecto compôs nos ensinarão a  frágil quietude em que estamos nesta ínfima viagem. Pintores do grau mínimo daquilo que somos aspiraremos ao infinito.
Humanos, todavia...


Ana

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

«Está nas nossas mãos»

Knossos, Creta, Grécia - José Alves


LEGADO

Disse: creio na poesia, no amor, na morte
e por isso mesmo, creio na imortalidade. 
Escrevo um verso,
escrevo o mundo, existo; existe o mundo.
Da ponta do meu dedo mínimo corre um rio.
O céu é sete vezes azul. 
Esta pureza
é de novo a primeira verdade, a minha última vontade.

                                           YANNIS RITSOS, Grécia, 1901-1990
Tradução de Eugénio de Andrade



Yannis Ritsos, nome maior da poesia grega contemporânea,  nascido em Monemvassia (Grécia), a 1 de Maio de 1909 e falecido a 11 de Novembro de 1990, em Atenas.
Para além da literatura, destacou-se na luta armada contra a ocupação nazi da Grécia. 


Knossos, Creta, Grécia - José Alves



     VIERAM
com os galões dourados
     os galos do Norte e as feras do Levante.
E tendo repartido em duas a minha carne
     acabaram por se disputar pelo meu fígado
e foram-se.
     "Para eles", disseram, "o fumo do sacrifício,
para nós os fumos da glória,
     amén."
E o som enviado do passado
     todos o ouvimos e conhecemos.
Conhecemos o som e de novo
     de voz apertada cantámos:
para nós, para nós o ferro ensanguentado
     e a traição triplamente urdida.
Para nós a madrugada na caldeira
     e os dentes cerrados até à hora derradeira,
e o dolo e a rede invisível.
     Para nós o rastejar na terra,
a jura escondida na escuridão
     dos olhos, a crueldade,
sem nenhuma, nunca nenhuma Contrapartida.
     Irmãos enganaram-nos!
"Para eles", disseram, "o fumo do sacrifício,
     para nós os fumos da glória,
amén."
     Mas tu na nossa mão a candeia das estrelas
com a tua fala acendeste, boca do inocente,
     porta do Paraíso!
A vigência do fumo no futuro vemos
     jogo da tua respiração
e seu poder e reinado!

                        de Louvado Seja (Áxion Estí)
tradução portuguesa e posfácio de 
Manuel Resende, Assírio e Alvim, 2004.

Odysséas Elytis é um poeta grego falecido em 1995. Recebeu o prémio Nobel em 1979.
Áxion Estí, publicado em 1959, é um poema nacional no qual o poeta, inspirado na tradição, revê a história da Grécia com todas as suas vicissitudes e anseia por um renascimento. E, como ele disse no Discurso do Prémio Nobel:

"No fundo, o mundo material é um puro amontoado de matéria. A construção final depende da nossa qualidade de arquitectos. O paraíso ou o inferno. Se a poesia contém uma garantia e isto nestes tempos sombrios, é precisamente esta: que o nosso destino, apesar de tudo, está nas nossas mãos."
 In Posfácio a Áxion Estí de Manuel Resende.


Museu de Heraklion, Creta - José Alves


Mais poemas gregos:





Knossos, Grécia - José Alves