Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Lugar de bruma


Havia no meu país,
lugar distante...
perdido na bruma,
um homem sem rosto,
que sorria, delirante.

Havia no meu país,
lugar de espuma,
odor de sol e de mosto,
um homem diáfano
que queria ser pássaro.

Ana

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Vila ou caminho?

The Voyage of Life, Thomas Cole

Às vezes este torpor,
Misto de sol e de calor,
Faz dos meus olhos tal vulcão
Que vejo as estruturas como bolas de sabão.

Máquina! O homem ao volante,
Domador preso em suas cadeias.
Talvez no seu sonho errante
Haja um pensamento em teias!

A vila agita-se, frenética, díspar.
Há um som de vozes e de motores!
Vou deixar de rimar...
É tal a diversidade de sentires e de cores!

Um caminhar egoísta,
Um agitar constante...
Ir, ir...mas aonde?
Oh, não! Parai! Parai!
Um homem caminha...
Pedaço de ser, mastigando,
Olha como se a cabeça
Fosse diabólica campainha...
Como se esperasse
Um estranho e relevante ataque!

Num stress mal disfarçado
A senhora de bem caminha...
Os cabelos pintados de fresco,
eriçados e orgulhosos,
O seu rosto natural já indefinido
Entre o ridículo e o mascarado.

Uma mulher, para a janela, caminha...
Bate o tapete, espera.
Lança os olhos para longe.
Para onde vai ela,
No seu ar de monge?

Um velhote a pedalar, caminha...
As pernas bambas,
Trémulo, onde irá?

Um grupo de desocupados, caminha....
Agita nas mãos um jornal!

Meninas da escola, caminham...
Nos braços livros, ao ombro uma sacola.

Pausa.

Os papéis desprezados;
O vento irado que os açoita;
Panfletos descolados;
Tudo o que se afoita
Caminha!

Vila ou caminho?
Caminho para onde?

Um casal, ainda, caminha...
Ela débil, ele gesticulando.
Neste caminho, caminhando,
São eles que sorrindo e amando,
Me fazem pôr um pouco de poesia
Neste mundo em que caminham,
Quem sabe? Se desencaminhando
Trapos de uma vida...
Da Vida, tão esquecida!

Ana

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Ubiquidade



Barcelona, José Alves (2010)

Há uma chuva que cai,
Silenciosa e constante,
Penosa filha do levante.

Há um silêncio que trai
O cansaço que trazes
Pesado e ultrajante...

Humano, tu que fazes,
Pequeno Zeus, infante,
Chuva, cinza que se esvai?

Ana

domingo, 12 de janeiro de 2014

Xénos (ξένος)

Mahabharata 


« O dever supremo é não fazer aos outros o que te causa dor quando to fazem a ti.»


Mahabharata 5, 15, 17



Confúcio

«A benevolência máxima consiste em não fazer aos outros aquilo que não queres que te façam a ti.»

Confúcio, Os Analectos, 15 - 23



Talmude

«O que para ti é odioso, não o faças ao teu próximo. Nisto consiste toda a Lei; todo o resto é um comentário.»


Talmude, Shabbat, 31


Unitarismo

«Afirmamos e promovemos o respeito pela rede unida de toda a existência da qual fazemos parte.»

(Princípio unitário)


Budismo

«Não trates os outros de maneiras que tu próprio considerarias cruéis.»

Buda, Udanavarga, 5, 18


Cristianismo
«Tudo o que desejas que os outros façam por ti, fá-lo tu por eles: nisto consiste a Lei.»

Mateus, 7, 12

Islão

«Nenhum de vocês crê verdadeiramente até que queira para os outros o que deseja para si mesmo.»

O Profeta Mahomé, Hadito

Sikismo
«Não sou estranho para ninguém e ninguém me é estranho.»

Siri Gurú Granth George

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Oxalá os homens fossem seres de Palavras...
Se tal acontecesse jamais seriam «xénos»....

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sábado, 11 de janeiro de 2014

Sublime oração descrente


Grécia, 2008 -  José Alves

Apanha o azul,
Mistura-o nas nossas almas...
E, serenamente, diz-nos: «Deus»!
Apanha a minha lágrima,
Nela me foge a vida
E nasce, renasce...
Tudo sublimas no teu peito - entrega
Obrigada!
Sei que entendes - mais - que compreendes
E a tua compreensão apaga o fogo,
Mitiga a inquietação - obrigada.
Aquilo que porventura dou - e é tão pouco,
Crê, tem a medida do que sou.
Sou pequena, vês?
Mas, não...
Estou a crescer ainda - a sair de mim!
Hipersensível? Humana apenas...
É assim a minha alma!
As pequenas coisas...
Não receis, sei sublimar,
É branco o que há em mim.
Lutas, guerrilhas? 
Estou a vencê-las...
A sustentá-las.

Ana (1977)



Por todo o lado encontro escritos e rabiscos...vou partilhando, timidamente, alguns. 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Mentira

September McGee


A verdade ergueu-se e não se sentiu!
Houve uma mentira instituída...
Ícaro e salmos ninguém os ouviu
E nos antípodas da fé, desenhou-se a vida.

Francisco de Assis ia de Mercedes
Anunciar o Cristo, pregar humildade,
nas casas mais ricas da cidade!

Ana

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Assim falou...


O sol é um menino-criança piscando os olhos ao despertar
O sol é um velhote boémio espreguiçando-se na manhã...
O sol é um bebé de fisionomia doce, pura e invulgar!

Ergue-se com vigor de vida e com afã!
Sol, paisagem linda, azul do mar...
Sol, sorriso em boca de romã.

desce imponente, indescritível, sem par!
Sol, fonte de calor -  és tu, meu amor!
És tu, fonte de vida e razão de Amar!

Ana

Escola de Atenas, Zoroastro (pormenor), Rafael, séc. XVI

domingo, 5 de janeiro de 2014

Recriar

 
 
Quando um país perde os seus símbolos, dia após dia, urge que se reerga e que, sem facciosismos, se recrie na dedicação e na coragem.
 

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Recalibragem

James Ensor, Christ´s Entry into Brussels
Palavras são máscaras
gastas semeadas
na multidão
do chão que pisas

Palavras são máscaras
vazias e frias
na solidão
sem pão de terras lisas

Ana


quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Memória histórica


Regressamos de Lisboa por um túnel de chuva cinzenta e triste. O rádio do carro informa-nos que morreu hoje, aos 105 anos, a viúva do General Humberto Delgado. Paz à sua vida.

Regresso pelo túnel de chuva cinzenta à menina que fui. 
Regressados do monte, os homens refugiam-se na casa, no quarto. Eu e o meu primo, miúdos de sete anos, jogamos cartas sentados no chão sobre uma manta. As vozes ecoam-me de um tempo remoto:
- Foram uns caçadores, ali na fronteira, que encontraram os corpos. Um cão farejou os restos...
Hei-de ter pesadelos nessa noite e noutras seguidas. 

Regresso pelo túnel de chuva a um tempo ao qual o meu país parece querer regressar. Ainda tenho pesadelos, mas já não encontro a criança que fui...

Regressos.