Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

terça-feira, 30 de abril de 2013

Como aprendi.



Florença, 2009 - José Alves
Desço serena a Via Guido Monaco, procuro o número doze, ali durmo quando estou. Há doze minutos deixei para trás a Duomo. Estou em Florença, como estou no descampado - maravilho-me a cada olhar e nunca me desoriento, como se aqui vivesse desde sempre. Sossegado, o Arno segue o seu rumo...conheço cada recanto desta cidade e habitei na harmonia de cada palácio periférico. Da Sinagoga aos museus e à azáfama das infindáveis praças...O Arno segue o seu rumo como o fio da minha recordação. Reconheço os cheiros e as vozes, guardo-os para sempre no meu íntimo património. Cada vez que aqui estou, repito o primeiro espanto da primeira chegada juvenil.

Florença, 2009 - José Alves
Nada me digas que a realidade atordoa. Só viajo com as armas que ainda tenho, no processo recorrente da fuga.  Aqui, agora, sonhos fugidios escapam-se para um futuro incerto. O avejão  sobrevoa a hora por vir e não há nevoeiro que se afigure no Verão que se adivinha.
Florença, 2009 - José Alves
Não me digas nada que hoje,  neste presente com grades e pesadelos, soam vozes lusas cacofónicas. É Primavera e tenho frio. Ah, vozes lusas! Com a certeza com que se afirmam asneiras se veste a ignorância.

Como aprendi na distante Florença, quero acreditar que o Homem ainda é a medida de todas as coisas...


Ana


sábado, 27 de abril de 2013

Revisitando...

Flor da Rosa, Crato - José Alves


Esplendor é a palavra que define o Alentejo, por estes dias.

Alter Pedroso - José Alves
Que nos ensinou a História?
Esplendor e espanto.
Grécia, 2008 - José Alves
O cão passa
Na Praça
Não é um cão
De Raça
Deita-se
Estica-se
Dormita
Na Praça
Com raça...

                      Ana               

quinta-feira, 25 de abril de 2013

A Forma Justa



Sei que seria possível construir o mundo justo 
As cidades poderiam ser claras e lavadas 
Pelo canto dos espaços e das fontes 
O céu o mar e a terra estão prontos 
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo 


                                                                                                       Sophia de Mello Breyner Andresen


O Velho Abutre

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas

Sophia de Mello Breyner Andresen, In Livro Sexto, 1962

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Se amo o que faço...



Jacek Yerka

Caminho cega pela luz matinal que inebria e consola. Os meus olhos, claros e cansados, transportam ainda os pesadelos da noite. 
No parque, de um verde inebriante, homens e mulheres já vagueiam na desconformidade destes dias. Inactivos, jovens espalham-se por bancos dispersos, sob os sobreiros que ainda aqui restam. Perto, o formigueiro humano já não fervilha de labor. A fábrica fechou há muito, mas no jardim as rosas, insistentes, ostentam suas cores. Cabisbaixos, os homens procuram os sonhos...
A límpida transparência do dia ainda me mostra a lua vigilante. Visão ímpar que reforça e cativa.
Aperto contra o peito dezenas de corações trémulos e receosos pelo futuro incerto. Dezenas de testes que tingiram de um cansaço raiado e sanguinolento o meu olhar aturdido. Aperto-os com a certeza de que  a fadiga é isto. A exaustão não a quero. Conheço o suão, senti a geada - as grades não me vencem assim.
Sorrio, ainda, à gente que passa. Nem sei se semeio alguma esperança, em dias por vir, no meu Sul tão antigo. Um alento qualquer, súbito, inunda os rostos amigos. 
Se amo o que faço, não venham agora acusar-me, então, da longínqua harmonia da cor da paisagem e do pardo olhar felino, que pouso em quem passa, fraterno e amigo. Sou fera que sabe a magia das garras.
No meu lugar ancestral a luz é tecida a prumo e compasso e o sol, nestes dias, é doce e abraça. 


                                     Ana


Obrigada, São Banza!




 São Banza visita-me com regularidade, tendo-se tornando uma amiga nas minhas cansadas noites de trabalho sem fim. Resolveu publicar um dos meus poemas no seu blogue. Agradeço os elogios que me fez esta amiga, mas como se sabe: eu apenas brinco com as palavras, elas são uma fuga na aridez dos dias. Sendo da «área», sei bem o que é um Poeta - eu não o sou.

Obrigada, minha amiga.

                                   Ana

terça-feira, 16 de abril de 2013

Cântico Negro





Portalegre


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!



                               José Régio




Olhando pela janela envidraçada do lugar onde como, tenho esta visão da cidade de Portalegre, mas são as palavras de Régio que me martelam na memória. Imagino-o a atravessar este mesmo jardim com um passo apressado a caminho do Liceu. A sua aula de Português esperava-o. A minha aula de Português espera-me. A rebeldia habita-nos. Trindade perfeita.

                                                           Ana



quinta-feira, 11 de abril de 2013

S.O.S.! S.O.S!

Medea, de Evelyn De Morgan, 1889


S.O.S! S.O.S!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!


Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...


E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!


José Gomes Ferreira



domingo, 7 de abril de 2013

Sem submissão...

FLOWN WITH THE WIND
Vladimir Kush

Ninguém nos poderá delapidar esta tarde rósea em que somos a brisa morna da planície. Fremente, a floração aguarda só mais um dia de sol. É essa liberdade de águias que nos crava no peito a esperança, mesmo quando todos imploram e sibilam a pobreza futura. É o velho orgulho da mestiçagem destes sangues, tão mesclados, que nos adoçou a voz e a tolerância sem submissão. Percorro contigo a vastidão destes lugares, sentindo a energia renovar o meu ser de criatura do Sul e, subitamente, um poema de Nemésio ajusta-se ao momento. Em surdina, habita-me o instante:

*****
Cruel como os Assírios,
Lânguido como os Persas,
Entre estrelas e círios
Cristão só nas conversas.
Árabe no sossego,
Africano no ardor;
No corpo, Grego, Grego!
Homem, seja onde for.
Romano na ambição,
Oriental no ardil
Latino na paixão,
Europeu por subtil:
Homem sou, homem só
(Pascal: "nem anjo nem bruto"):
Cristãmente, do pó
Me levante impoluto.

Vitorino Nemésio


sexta-feira, 5 de abril de 2013

Justitia Mater

Tuscany Village
BOB PEJMAN
Associar uma pintura da Toscana a Antero de Quental pode ser alguma coisa de estranho, para quem me ler. As estruturas antropológicas do imaginário têm destas coisas. Todavia, estive ali por duas vezes (1982 e 2009), sempre com o meu subsídio de férias, abdicando de luxos e de coisas materiais que não valorizo tanto como esse partir à descoberta da cultura do Mediterrâneo. Trabalho há trinta e seis anos, desde os dezoito, e continuarei a fazê-lo, se cá estiver, num tempo a perder de vista. 
A Literatura é a minha paixão e profissão. Hoje, só Antero poderá ser a minha voz.

*****
Nas florestas solenes há o culto 
Da eterna, íntima força primitiva: 
Na serra, o grito audaz da alma cativa, 
Do coração, em seu combate inulto: 

No espaço constelado passa o vulto 
Do inominado Alguém, que os sóis aviva: 
No mar ouve-se a voz grave e aflitiva 
D'um deus que luta, poderoso e inculto. 

Mas nas negras cidades, onde solta 
Se ergue, de sangue medida, a revolta, 
Como incêndio que um vento bravo atiça, 

Há mais alta missão, mais alta glória: 
O combater, à grande luz da história, 
Os combates eternos da Justiça! 

                                           Antero de Quental,
Sonetos
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130187.html

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Da Mudança...

Vladimir Kush


«Tudo flui, nada persiste, nem permanece o mesmo.», Heráclito



Vladimir Kush



segunda-feira, 1 de abril de 2013

José

Edward Robert Hughes, Heart of Snow


Nota prévia: dizem-me, por vezes, que expresso pouco lirismo. É verdade, sou contida. Euforia e disforia estão fora do meu vocabulário. Prefiro o sorriso à gargalhada e o silêncio ao grito. Tudo isto aprendi com a vida...porém o lirismo perdura, só não o publico. Hoje, abro uma excepção e quebro o «gelo».



Desenham-se aromas celestes
E os teus braços estendem-se,
Agarram a minha vida toda
E cercam o envolvente Amor
Que perfumas...
Sol, azul, calor intenso!
Os teus braços...
Incenso tão meu perfumando
O Amor tão nosso, tão nosso!
E as palavras entram nas palavras
E as palavras colam-se às palavras.
Silenciosa, no ímpeto da vida,
A tua boca...
Unindo, vivificando, enlouquecendo!
Digo-te:
Não há poesia, não há rima, não há regra
Que cante, que defina, que enobreça...
Tua mão segura a minha vida
Perto do orvalho onde a manhã começa,
Perto do tudo onde o uno se alimenta!
Jorra exaltada a Palavra
E entra em nós...
Como fogo, como raio,
Como água pura sussurrando:
Amo-te.


Ana