Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

domingo, 20 de dezembro de 2020

BOAS FESTAS

 

Mar da Galileia/Kineret



Na margem de uma guerra qualquer, olhando os incautos passantes, desejo-te a Paz. No dia que finda, recordo que, para lá do horizonte, muitos não se erguerão no dia que recomeçará. As aparências não me fascinam, a profundidade atemoriza-me e deslumbra-me. São doces estas águas que olhas vagamente. São doces e, todavia, por elas se fez (fará) a guerra. 
Atrás, os destroços, não pouparam nem os mortos...e falas-me de um Deus menino, poderá ser? Ele pisou estes lugares, dirás. Por Esse farás as Festas e celebrarás o fim de um ano incomum a que convencionámos chamar tempo comum. Aqui, outro calendário me diz de outro tempo e o agora é já além de meados o quinto milénio. 
Assim caminhamos, reféns das disputas, tantas,  que até as divindades as tecem!



 
Desejo-te a Paz e a Saúde! E que tombem os que neste mundo cavalgam sobre a força da ignorância.

Sejamos fraternos e puros ...voltarei!

BOAS FESTAS MEUS AMIGOS!





domingo, 13 de dezembro de 2020

Impúdica

 

Alentejo, António Neves


Às vezes uma neblina líquida

envolve a memória de outras eras

e um silêncio súbito vai crescendo

no murmurar do musgo que encerras


Às vezes uma irrequieta nuvem

recorta a terra fresca e impúdica

e um silêncio súbito em crescendo

torna-se o secreto sinal e doce númen


Ana

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Já te disse

 

Jim Warren

Não sei se sabes, se já te disse,

Os íntimos segredos deste tempo...

Houve a flor, o sonho, houve o vento!


Ouve o silêncio a ruminar, se já te disse,

No virar dos dias exaustos e ínfimos.

Secretos vieram atordoados de alento!


E as toadas dos dias trinaram, se já te disse,

Dançaram no sonho, subiram no vento...

Sagraram as vidas nas aras do Tempo!


Ana

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Portugalidade

 

Rob Gonsalves, «Retrato da Comunidade»


Nota breve no tempo que me foge: morreu Eduardo Lourenço, o pensador onde enformei muito do que penso, no mesmo dia de Dezembro em que morrera a minha querida avó Ana, construtora inicial da mulher que sou. Estranha coincidência. Feliz coincidência. Duas longas vidas, plenas e rectas. 


« Era convicção funda(e, sem dúvida, fundada)da maioria dos intelectuais portugueses, a de supor que uma certa cultura e, sobretudo, a respiração normal dela, era um manjar celeste para a nossa pobre mesa de eternos provincianos.» 

                                  Eduardo Lourenço, Labirinto da Saudade, pág. 175

 

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Clara manhã

 

Toshizo Nakane


Clara manhã, nas brumas do parque.

Alma límpida do dia boreal...

E este silêncio, no secreto segredo

Que arfa em nós na rósea,

Cristalina luz!


Clara manhã, dos dias ou pérolas

Que desfiamos do imenso colar.


E a secreta esperança que reluz

No âmago do sonho inicial...

E este silêncio, no secreto segredo

Que arfa em nós na rósea,

Cristalina luz!


Ana



domingo, 15 de novembro de 2020

Joana Lapa

 

                                                                    Maria João Fernandes


Às vezes passeio pela memória, escorrego no tempo interior, e tenho reencontros felizes. Olho, vagamente um quadro dependurado na minha frente. Está ali há tempos. A sua autora já habitou os meus dias como o quadro se instalou na minha parede ainda há mais tempo. Ah, o Tempo que não devora tudo! Desiludam-se os Antigos...eu prefiro Sophia de Mello Breyner, 


Não se perdeu nenhuma coisa em mim.

Continuam as noites e os poentes

Que escorreram na casa e no jardim,

Continuam as vozes diferentes

Que intactas no meu ser estão suspensas.

Trago o terror e trago a claridade,

E através de todas as presenças

Caminho para a única unidade.


Maria João Fernandes foi minha professora de Literatura e eu, qual Saramago a ler Ricardo Reis (que ousadia), pensei durante algum tempo que Joana Lapa seria outra pessoa. Afinal, a minha mestra, mulher de muitos talentos - professora, crítica de arte, ensaísta, curadora, poetisa, humana de olhar claro e doce - escreve poemas por detrás de um pseudónimo. O mesmo que ali está na serigrafia de homenagem a Almada Negreiros: Joana Lapa. Conheci-a tão jovem. Acreditou tanto em mim. Ah, não sei se a não defraudei...

Aqui vos deixo um dos seus poemas: (daqui)

                                                                                       

 No litoral submerso do meu ser

a pena de uma gaivota

amante do verão

escreve os gestos da espuma.

 

O pássaro a que pertence

atravessou o sol,

as fronteiras do dia

para acordar no lilás das sombras

a ressurreição do mundo.

                         Cadernos do Vento



                                                                           «La poesía nos viste de resurrección»

                                                                                          Alfredo Pérez Alencart

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Intimamente

 

G. Ribeiro Teles


Olho pela vidraça. Há flores e folhagem verde, como se a Natureza se distendesse após os calores tórridos deste Verão que aturdiu e cegou os pássaros cansados. O cansaço da corrida diária pode arredar a adrelina dos dias. Silêncios. Pássaros tardios. Silêncios.
Tu não sabes e não podes adivinhar. Cada dia é um limite. Cada dia dia o limite se alonga como um horizonte na planície. Cada acção se paga, cada deslize se reflecte no narcísico lago. A prosa dos dias.
Trabalhamos em universos infinitos: virtuais, parciais e reais... mas já perdemos a noção do Real. Ricardo Reis vai ajudando a aceitar o destino. O seu ritmo cadencia a minha voz...Os sábios de Alexandria ficaram próximos, descemos até à Pérsia. Percebeste que o planeta ficou minúsculo, eu percebi que os dias se tornaram muito pequenos e que, neles, não cabe a minha vida toda. 
Quero que cumpras a tua vida e que não cedas à desesperança. Sorrio como posso e, intimamente, desejo que o meu olhar ainda te conceda algum brilho. Às vezes penso que talvez se tenha apagado a velha luz, que os anos desbotem a empatia e que tudo se tenha tornado asséptico.


                                                                         in, Jornal d Madeira

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

É meu desígnio

 

                                                                   Rafal Olbinski

É meu desígnio
falar-te da esperança...
Incendiar os poentes desmaiados!
É meu desígnio
limpar este horizonte
e ansiar os dias renovados!

Limpando os silêncios,
escrevendo hinos de mudança,
amando as róseas madrugadas,
calcando a vítrea geada
nas veredas que serpenteiam
pela terra inexplorada!

É meu desígnio
falar-te da esperança!

Ana

 


segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Hodiernos

 

                                                     Veneza, 2010 - José Alves                                                      



Ainda como num sonho,
o brilho é um mero artifício,
mergulhado na negridão.
Arruínam-se as novas rotas,
Destroem-se todas as frotas, 
aos nómadas da escravidão.
O breu é agora medonho...
no trilho renovado do suplício!


Ana


domingo, 27 de setembro de 2020

Sugestão de leitura

 

                                                                   Temas &Debates


Vivemos tempos complexos. O meu, em particular, vai-se escoando a uma velocidade estonteante. Gosto da lentidão, já se sabe, do resfolegar morno e materno da planície...mas a vida insiste em contrariar-me. Só um vício continuo a alimentar: ler, ler e ler. Assim, por vezes, me tenho que retirar, nesse silêncio e distância. 

Leitora de muitos ensaios, aqui vos deixo uma sugestão bem adequada aos tempos arenosos que pisamos. «Tudo é  Economia», dizem-nos! Frase tão falsa, como perigosa. Sofisticada forma de nazismo, criadora de ilusões de «perfeição» e de «apuramento» de uma forma de ser e de estar. 

Vender a felicidade, sob toda a forma de disfarces parece ser o último dos embustes.



SINOPSE

A indústria da felicidade, que movimenta milhões de euros, garante transformar os indivíduos em pessoas capazes de dominarem os seus sentimentos negativos, e de tirarem o melhor partido de si próprias por meio do controlo completo dos desejos improdutivos e dos pensamentos derrotistas.

Porém, não estaremos perante um novo ardil que visa convencer-nos, uma vez mais, de que a riqueza e a pobreza, o êxito e o falhanço, a saúde e a doença são única e exclusivamente da nossa responsabilidade? E se o propósito da chamada «ciência da felicidade» for a criação de um modelo social individualista que renega qualquer ideia de comunidade?


terça-feira, 15 de setembro de 2020

Provisórios


Rafal Olbinski



Provisórios são estes dias
no fulgor incendiado de Setembro
e os homens inquietos em agonias
sonham já os frios de Novembro
E correm sôfregos de vento
na brisa que suspende este pó
onde se sentam a medo e sem magias
ninfas caídas de um ido tempo
provisórias e suspensas deste nó

Ana

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Voragem


Rob Gonsalves


Corremos na paisagem
e os passos que soam
sobre a voragem
dos dias infindáveis

são arcos de luz e ecoam
no retroceder da estiagem

Troam e escoam  nesta viagem
de últimos barcos e partirão
como arcos de sonhos incensáveis

Amanhã silenciarão o Homem

Ana

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Ainda Somos um Segredo

https://www.fogecomigo.pt/product/guia-alto-alentejo-ainda-somos-um-segredo

O título sugestivo acompanhou-nos neste Verão. Julho trouxe-me a vista esquerda, Agosto refez-me a vista direita e a pandemia aprisionou-me no meu Alentejo. Assim, desvendámos alguns recantos secretos e pouco visitados do megalitismo alentejano e perdemo-nos pela charneca tisnada pelo Sol escaldante. 
Há muito que tinha este guia turístico, mas estava convencida de conhecer bem o meu território, como aqueles alunos que não lendo as obras se orientam com resumos...e havia uma outra razão mais íntima. Sempre que o abria não encontrava uma referência fundamentada ao passado judaico desta terra sefardita. Mas o resto lá está! Mesmo as remotas pinturas rupestres a céu aberto. Sim, existem pinturas rupestres, por aqui! Uma visita na Primavera pode ser um deslumbramento de cores e tonalidades. Fica o convite.

Lapa dos Gaivões

Ainda Somos um Segredo fez-me recordar aquele dia, já distante, em que perante o anfiteatro um de uma destacada universidade, repleto de académicos, a arguente me disse do alto da sua distinção: «Tudo muito bem, mas não existiram criptojudeus.» E, eu, que tudo vi acontecer na casa da minha avó materna e vivi a realidade ali negada, calei-me. Percebi, naquele instante, que o antissemitismo existe e é transversal. Percebi que existem máculas de bastardia social em todas os estratos. Que sabem os doutores da vida? Que sabe a vida dos feudos dos doutores? Que aprendi, eu? Fácil: tudo muito bem, assim se falha o cum laude. Não me interessam as supremas honras dos discriminadores.

Anna Hatherly olhou-me com aqueles seus olhos de água e eu sorri. Cá fora disse-me: «Eu avisei-a, se tivesse vindo o Aguiar e Silva isto não aconteceria. Teve grande coragem em não retirar o termo e ignorar o reparo». 
- Professora, eu não mentiria.

Retirei do pescoço o pequeno triângulo de ouro e entreguei-lho. Disse-me a Dalila - ao estudar a poetisa -  que, o tal pendente, ainda faz parte do seu espólio.





Na sensual tranquilidade da palavra
o poeta tenta uma arriscada ordem
e entre a fábula e a reportagem

simula mentir
para atingir
a superior verdade

Ana Hatherly, in A Idade da Escrita

domingo, 9 de agosto de 2020

Do Líbano

Arte fenícia ou dos cananeus - libanesa
Helen Zughaib, pintora libanesa


DEIXO-LHE MEU CORAÇÃO

O que tu perguntas
por ódio, meu irmão?
Já te deixei, em cima dos meus lábios ardentes,
entranhas destruídas no lago
e na praia, latejando, pedaços de minha pele.
Eu morro no limiar da tua pátria.
A espada das tuas gerações
descansa no meu pescoço
e o chicote dos teus ancestrais açoita-me.
Eu morro sob teus pés
para saber as tuas línguas,
para misturar o gelo de inverno
e brotar na primavera
fiz um casulo com tuas flores.
As folhas das árvores murcham,
mas suas sementes são
o eco inextinguível da terra.
O coração me invade
enquanto tu contemplas,
agora que eu lentamente desligo e
os seus corpos crescem diante dos meus olhos.

Said Akl (poeta libanês, m. 2014 em Beirute aos 102 anos)


P.S. Estou de volta e correu bem, outra vez. 


Obrigada pelo apoio e paciência.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Já deveria ter dito




Poderia falar das ausências, do excesso da Luz, das infinitas páginas lidas, do trabalho excessivo...mas, essa é a riqueza da vida, na busca infindável que o Tempo nos concede.

Fica apenas a verdade: o cristalino teve que ser substituído e isso me tem afastado destes lugares.

Vou regressando...

Bom fim-de-semana, meus amigos!



sexta-feira, 17 de julho de 2020

Com o Sol a prumo


Alentejo, Rádio Campanário




Com o Sol a cair-nos sobre a cabeça, cá vamos vivendo. Temos a consciência dos dias árduos, das súbitas madrugadas que rasgam as janelas abertas com um fresco ar de noroeste e deste silêncio que se abate sobre os corpos lassos.
Este é o lugar que amamos. Nele, os extremos moldaram a natureza dos homens e relativizaram a acidez de cada momento. Nele, forjámos o carácter de que nos acusam, mas que nos identifica e nos torna capazes de não desistirmos nunca. Nele, a eterna juventude que uma sociedade de plástico vendeu, nunca vingou - nós amamos os velhos! Eles são a sageza e a memória dos tempos - ainda os ouço na soleira da porta da minha infância, quando esperávamos a frescura das noites longas de outros tempos tórridos!
Somos assim, orgulhosos de o ser, numa raiz velha de tantas misturas de povos que por aqui passaram - bastardia que não tolera a injustiça, ainda que disfarçada de alguma veste solene.
Agora, aqui estamos, ao dispor do que virá. Chama-lhe destino, divindade, ou pandemia, ou crise. Agora, aqui estamos e lutaremos! 



Ana


sábado, 13 de junho de 2020

Líquida curva



Suavíssima luz que escorrendo vai
sobre a cal cristalina, sem afã.
Alva e secreta madrugada
que doce e inquieta cai
despejando rubros bagos de romã!

Perturbada sombra que se esvai
na líquida curva por ti sonhada.

Suavíssima luz que inquieta vai!

Ana

domingo, 7 de junho de 2020

Pelo alvaçuz



Cruzeiro Seixas - 'Longa viagem ao mundo das palavras azuis'


deixa-me hoje sonhar
que o vento febril
murmura
faz e refaz
num inquieto desenhar
a dobrada manhã
primaveril

deixa-me hoje sonhar
o sorriso infantil
que sussurra
que desfaz
o pétreo olhar
no dobrado afã
tão hostil

deixa-me hoje sonhar
o mundo refeito
de fragmentos de luz
de um sonho desfeito
ainda a vogar
pelo alvaçuz

Ana


domingo, 31 de maio de 2020

Trovoadas

Foto: Radio Campanário - maio 2020

Na inconstância dos dias, a beleza agreste da planície desperta-nos como o murmúrio de uma nascente adormecida. Aulas a fio, feitas à distância, por processos inimagináveis e aqueles outros jovens assustados que sorriem vagamente, na lonjura de três metros. São dez de cada vez, em turnos sucessivos. O auditório imenso, o palco, a sombra e aquela voz, que é a minha, soando estranha por detrás da máscara. Onde estão os sorrisos? Quem são estes meninos que não conheço, perfilados e quietos? Que lhes reservará o Futuro? Lemos Saramago que, suspeito, eles não leram. A frieza dos rostos inexpressivos drapeados a azul clínico, neste dia de quarenta graus.
Trovoadas diárias despertam os meus medos ancestrais. Sou o felino que se esgueira no mato verde da charneca.Tenho medo e quero ver. Gosto de olhar o pavor de frente. Assim, ele se esfuma e que «Os raios não nos partam!». Quero a liberdade plana do meu chão.

Ana

sexta-feira, 29 de maio de 2020

As Não-Notícias...

Gonçalo Ribeiro Telles não morreu

Ao contrário do que foi escrito pelo Observador, Gonçalo Ribeiro Telles não morreu. O equívoco surgiu de um contacto com um amigo próximo do arquitecto. As nossas desculpas ao próprio e à família.(Observador).


Encontrado corpo de jovem 
que morreu
 afogado a tentar homem no Alvor
(Jornal i)


Os concelhos mais afetados encontram-se nos subúrbios da cidade de Lisboa. Há um conjunto de focos dispersos pela a região que fazem subir o número global de contágios. (Observador)



Médio Oriente - José Alves - 2019


O meu tempo foge, como alguns @migos sabem de há muito. Quando O Sul Sereno se cala o meu quotidiano agita-se, num movimento pendular e sem pausas, entre o trabalho e a família - especialmente a sénior.
Dias que de súbito se esgotam.
Resta-me um evasivo minuto para me surpreender com as não-notícias e a total destruição do jornalismo.

Bom fim-de-semana, meus amigos.


domingo, 3 de maio de 2020

O meu lugar

Senhora dos Prazeres, foto da Câmara Municipal de Ponte de Sor


Lugar de alguns sonhos corridos por esses caminhos. Lugar de noites feitas de fiapos de relento e de astros familiares identificados no breu. Lugar de bateria recarregada, porque a alma ancestral ali se lava do quotidiano. O romance, as pedaladas vigorosas na familiar bicicleta. A corrida dos velhos tempos de atleta. A caminhada longa. A chegada motorizada.
Ancestral «Senhora dos Prazeres» que tanto te amamos. Tu, a velha fenícia da inscrição que ainda guardas. Tu, a romana convertida aos prazeres sórdidos do caminhante em velha estalagem que aliviava a estrada até Mérida. Tu, a templária de secretos segredos que ainda hoje guardas nos teus cultos primaveris. Velha sefardita, aliada a Castelo de Vide, dos imensos piqueniques campestres. És nossa em Maio e dos de Castelo de Vide em Setembro. «Senhora dos Prazeres», com esse topónimo, alguma vez foste católica?
Madrinha de meninas que nasceram como eu, filhas de um tempo antigo. Padrinhos? Dois. Madrinha? Tu! Hoje, anos levados, ainda te amo na tua singela complexidade, na ausência de tantos a quem quisemos juntas.
Vejo-te como o Açor que sobrevoa a nossa terra e lhe roubou o nome. A criança que me habita, corre pelos caminhos desarvorada, feita trigo do Futuro.

Ana


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Tinham o Sol

Ana 

Eles tinham o Sol

e o brilho da tarde que findava

Eles eram o arrebol
de Verões enfurecidos
quentes e amanhecidos
quando a madrugada os pintava

Eles sabiam do salmo
conheciam o hino
deste futuro tão calmo
refém estático do Destino

Eles conheciam a paixão
o calor tórrido do Verão
o pó quente dos caminhos

Eles não estavam sozinhos


Ana




domingo, 12 de abril de 2020

Querida Sefarad


Ascent of The Spirit, Vladimir Kush


A terra da minha infância leva-me a essa pura ascensão do espírito. Estes caminhos da memória são feitos de muitos passos e de alguma fuga ao pensamento estabelecido. Trazem-me o som rangente da bicicleta sobre a areia solta.


Falcão, 2020


Este é o cheiro das estevas quentes pelos primeiros raios do sol primaveril. Viagem de retorno eterno. Vida a desabrochar, mesmo se daqui quase todos partiram. Esta é a passagem.


Aldraba, 2020


A mão, a vida física, a protecção da velha casa da avó. Mas, esta,  era só uma casa de passagem. Logo à entrada, num recanto, estava a verdadeira chave da casa que não abria esta porta. 



Crescente ou fermento, 2020, cá de casa


Façamos só mais alguns pães. Contigo, avó, aprendo o fermento. É um exercício de espera e de paciência. Com a mãe o continuo. Hoje, estou sozinha a alimentá-lo. Este cheiro genuíno, este travo ácido...vem de um lugar remoto na minha infância.



Pão alentejano, 2020, cá de casa

Duvidas, ainda? A cultura materna não se escreve nos livros. Ela é a vida, este valor intransmissível que respeitamos em cada tonalidade e que aprendemos vivendo. Não a aprendi em nenhuma das universidades por onde andei.


Bolo de bacia tradicional, 2020, cá de casa

O cheiro quente da canela e da erva-doce há-de renovar cada sentido, como um hino ou como um salmo. A tradição não significa conservar, mimetizar, teatralizar...a renovação é o significado íntimo de cada gesto. Quantas vezes te falei da sobrevivência?


Pão sem fermento, 2020, cá de casa

Hoje deitamos fora a massa velha e renovamos o antigo ritual. No nosso querido Alentejo, o cabrito há-de estar sobre a mesa e, humanos seremos...comendo!


Cabrito de leite,2020, cá de casa

Não me peças, hoje, Poesia!
Ao longe, no mais rico dos países, a desumanidade grassa e o pavor instala-se. Nós conhecemos a perseguição, o caminho da sombra, mas somos humanos e sofremos. A nossa rota invisível, como o inimigo que nos persegue, não logrará vencer a nossa Humanidade!


Nova Iorque, valas comuns, 2020
Ana


Nota: itens alimentares cá de casa!


terça-feira, 7 de abril de 2020

A Estranha Ordem das Coisas

Atrás das barras_P & Ink, Vladimir Kush

Com os meus alunos do outro lado de um ecrã, alojados numa turma virtual e entregues a uma aula digital, escondidos de um inimigo invisível, procuro a expressão mais exacta de cada momento. Não é uma tarefa fácil, nem para mim que vivo do uso desta nossa Língua comum.
A primeira semana foi a de uma ausência. Onde está o parque que atravessaria a cada manhã, enchendo o peito dos primeiros raios de luz para levar até vós? Onde, aquele frenesim de vida a desabrochar em cada olhar fugidio ou acolhedor como o futuro que prepararíamos juntos? Onde, o meu chegar silencioso e súbito que te surpreenderia num susto pueril? Onde a empatia e o sorriso, ou o ar severo que para ti ensaio?
E o tempo vai criando a rotina de uma (novi)profissão que preencheu os dias inteiros numa distopia, verdadeira antiutopia de tudo o que fui. 
E, neste negativo da velha fotografia daquilo que fomos, restou-me escolher mais um livro para ler. Aqui partilho convosco A Estranha Ordem das Coisas, de António Damásio

A Estranha Ordem das Coisas - Livro - WOOK


«Os seres humanos acabam sempre por depender da maquinaria dos afectos e das suas ligações com a razão. Não há maneira de fugir a tal condição.» pág. 305, 1.ª edição, 2017 


Saúde, meus amigos!


sábado, 21 de março de 2020

POESIA IMORTAL

«Safo admirando Alceu», Lawrence Alma-Tadema
«Dizem que há nove musas, que falta de memória! Esqueceram a décima, Safo de Lesbos» (Platão)


..........Só hoje sei o que é ser deus… Quem é esse homem que está sentado na tua frente enquanto tu falas descuidada e ris de maneira encantadora? 
..........O meu coração bate-me descontroladamente no peito e eu pergunto-me, tentando sondar este mistério: 
...........Que se passa comigo, se, de repente, me vejo a habitar um mundo deserto, se os meus ouvidos parecem feitos de zumbidos e os meus olhos já não servem para ver, se a própria boca indomável das palavras emudeceu? 
...........Como entender este tremor louco sem febre, este gelo que me inteiriça os membros a par deste fogo que pega na caruma interior das minhas veias, este ficar mais verde do que a erva, esta proximidade constante de morrer? 
..............Dizem que tudo se deve suportar. Mas para quê?
                                                                            
                                                               (fragmento 2 D)

Adaptação de Manuel Pulquério, Univ. Católica




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Safo terá vivido no século VII AC e é a Poetisa. A poesia clássica ainda é inigualável. 
Como ousaria, eu, corromper este Dia com a banalidade ou a imitação da lírica pós-moderna?




BEM HAJAM!