Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

IRMANDADE


Odilon Redon, "A Morte de Buda"


Sou homem: duro pouco
e é enorme a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
Também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.

Octávio Paz



segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

A janela

 

https://bettinabaldassari.wixsite.com/bettinabaldassari/portfolio

    
    Havia uma janela na casa da avó e dela eu via o mundo. O aroma a café inundava a casa e, lá fora, na rua de paralelepípedos ecoava o patear do cavalo que o senhor Pintão amestrava numa dança bem ritmada.
    Por vezes, uma brigada de GNR descia a rua zelando uma ordem de espartilho bem apertado. Só o meu pensamento esvoaçava pelos telhados de Janeiro, numa transgressão de menina que corria com os lobos.
    Havia, por certo, outros mundos de casas mais altas e gente aprumada, já encontrara tantas dessas pessoas nos romances que devorava, quando a fuga ao olhar da janela se debruçava e mergulhava nos velhos livros...
    
Bettina Baldassari, "Waiting"

       
Ao serão, bebíamos chá verde e comíamos bolachas. A avó contava episódios de outros tempos, das guerras, das profecias, dos sinais de fogo, de Castelo de Vide, das noites no monte, dos livros do pai dela, de costumes nossos que não poderíamos divulgar mas deveríamos manter, do voto do avô em Humberto Delgado, da necessidade daqueles rituais tão nossos...
    Manhãs serenas de fatias douradas.Tardes de gaspachos e arrebóis incendiados.
    "Vó", para onde foram as aves?


                Ana
    


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

O mundo às avessas

 

Telaviv, 2019

    

    Estranho este "mundo às avessas", na gasta expressão que herdámos dos gregos e que pulula por aí nos títulos de livros, artigos, e o mais que se queira ler ou escutar...gasta e sempre actual, para infelicidade dos humanos. Arquíloco de Paros teria sido o seu criador, quando observava um eclipse solar no século VII AC. Já nada seria impossível, pois Zeus tinha escurecido o Sol.
    A expressão vagueou pelos tempos, emergiu em Gil Vicente, Camões, ressurgiu no Barroco e em tantos outros que olharam com acuidade para aquilo que nos cerca.
    Emergiu, aos meus olhos, quando caminhava por Telavive e me deparei com o edifício de nove andares (sede do Likud) que aloja um partido político de ideias perigosamente conservadoras, violentas e extremadas. Emerge, quando um povo é aprisionado pelo terrorismo que o diz defender e o usa como escudo que se esvai em morte e sangue. Emerge, quando as democracias ocidentais cedem os seus lugares institucionais a antidemocratas após eleições democráticas. 
    A origem poética da expressão-título cede sempre às circunstâncias históricas. Traduz o desconcerto e o descontentamento, a injustiça e a morte que vence a vida.     A Poesia não nos salva, mas alarga e humaniza o olhar, por isso, não cedamos à visão apocalíptica do mundo, tão cara a inúmeros poetas portugueses!
    Temos um destino comum, enquanto Humanidade. Cumprimos a vida e partimos, mas a nossa missão é deixar a Esperança aos vindouros.

    O "mundo às avessas" não nos pode destruir enquanto Humanidade!

Ana
    

    
Coração, coração, por lutos inelutáveis agitado,
levanta! Protege-te dos inimigos, volvendo adverso
peito; nas ciladas hostis próximo te postas,
firme! E vencendo, não exultes abertamente,
nem vencido, em casa caído lamentes;
mas com alegrias alegra-te e deplora os males
sem excesso: aprende que ritmo rege a humanidade.

Arquíloco de Paros (séc. VII a.C.), fragmento 128






(Trad. Rafael Brunhara)

θυμέ, θύμ’, ἀμηχάνοισι κήδεσιν κυκώμενε,
†ἀναδευ δυσμενῶν† δ’ ἀλέξεο προσβαλὼν ἐναντίον
στέρνον †ἐνδοκοισιν ἐχθρῶν πλησίον κατασταθεὶς
ἀσφαλέως· καὶ μήτε νικέων ἀμφάδην ἀγάλλεο,
μηδὲ νικηθεὶς ἐν οἴκωι καταπεσὼν ὀδύρεο,
ἀλλὰ χαρτοῖσίν τε χαῖρε καὶ κακοῖσιν ἀσχάλα
μὴ λίην, γίνωσκε δ’ οἷος ῥυσμὸς ἀνθρώπους ἔχει.