Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

domingo, 29 de janeiro de 2023

Estranho...

 

Alentejo, 2023

    Estranho anda o mundo. Nem os poentes incendiados da minha terra plana conseguem esfumar tanta estranheza. Incapaz de indiferença, mergulho no trabalho e afundo-me em silêncio. A minha natureza alentejana sabe silenciar-se.
    A imensa cacografia em que os dias mediáticos se tornaram extremaram o pensamento de muita gente. As pessoas entrincheiraram-se em opiniões fortificadas e, numa questão de algum tempo, os totalitarismos assomarão e instalar-se-ão. Basta ler os sinais.
    As guerras alimentam-se dos ódios submersos e da miséria humana. À porta, as temos e, as mais demoradas e devastadoras, vão-se esmorecendo da actualidade televisiva. Escolas de crueldade, de corrupção, lugar emergente do caos e das ditaduras...
    A nossa identidade pode ser, agora, olhada pela intolerância: a minha bastardia alentejana; o meu sangue impuro de cristã nova; a minha condição de professora e pária social; até as seis décadas de vida, numa sociedade espectáculo que privilegia o verniz que a juventude nos dá...por pouco tempo...
    E por tudo isto, ir-vos-ei contando pequenos eventos subtis, dos tantos sítios por onde passei.

Ana

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

As Palavras Interditas

Ana, 2023




Os Navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
Partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram-se nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos noturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.



Eugénio de Andrade in As Palavras Interditas, 1951