Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

domingo, 21 de março de 2010

O meu verdadeiro poema


Benjamin Wu, óleo sobre tela


Deixo-vos com o meu verdadeiro Poema: o meu filho.

O texto que se segue foi escrito por ele, amante de Física e apaixonado por metamateriais:



«Exausto sento-me naquele lugar da carruagem. Mais uma decisão na minha vida que firmei por motivo algum em particular. Talvez tenha até aferido sobre qual seria a minha preferência, entre a panóplia de experiências de viagens em diferentes lugares de carruagens como esta, discussão inconsciente que certamente ocorreu em paralelo com outra qualquer e provavelmente numa sala alheia à dos meus desejos mais imediatos, mas como em tantas outras decisões o meu Inconsciente pura e simplesmente me quis ali... encostado à janela, e, como em tantas outras visitas a carruagens como esta, de costas para o sentido do movimento de mais um comboio, no fim de mais um dia.
Entorpecido encosto a cabeça ao vidro e assim que se sustem o movimento do meu corpo, sujeito agora apenas aos solavancos dos carris, sou invadido novamente por tudo aquilo que me sufoca e me absorve. Aquelas vozes incansáveis e impossíveis de emudecer que nos tentam mostrar que grande parte do nosso ser é tudo menos imutável e que este se deixa lapidar de uma forma exagerada pela vida que levamos ou que nos fazem levar, mesmo que isso nos atormente. Senti-mo-nos paradoxalmente sós e presos a este viver comum, mas ao mesmo tempo convergimos no limite para este Ser único, esta consciência que a cada um de nós, egoístas criaturas, liga a todas as outras, eternas responsáveis.
Continuo assim a viagem, embriagado pelos propósitos da minha própria existência, por tudo o que me faz ser quem sou e por tudo o que me obriga a viver assim mesmo que não o queira, e de repente algo me desperta e me traz para fora de meus pensamentos. Algo no vidro. Deixo de conseguir ouvir as súplicas e de registar as quasi-talmúdicas discussões entre as "animadas" faces do meu sub-consciente. Permaneço ali, atónito perante aquela imagem. Todo o meu intelecto emerge deste transe envenenado e concentra-se naquela imagem que me acorda de traços tão (naturalmente) familiares. Olho assim o meu reflexo na janela deste comboio e permaneço assombrado por simplesmente já não o conhecer.»


Rádio Clandestino (meu Filho)

quinta-feira, 11 de março de 2010

RELER CLÁSSICOS

José Alves / Açores, Terceira


«A Tranquilidade da Alma não se Alcança em Viagens

Pensas que só a ti isso sucedeu; admiras-te, como se fosse um caso raro, de após uma tão grande viagem e uma tão grande variedade de locais visitados não teres conseguido dissipar essa tristeza que te pesa na alma!? Deves é mudar de alma, não de clima. Ainda que atravesses a vastidão do mar, ainda que, como diz o nosso Vergílio, as costas, as cidades desapareçam no horizonte, os teus vícios seguir-te-ão onde quer que tu vás. Do mesmo se queixou um dia alguém a Sócrates: «Porquê admirar-te da inutilidade das tuas viagens,» - foi a resposta, - «se para todo o lado levas a mesma disposição? A causa que te aflige é exactamente a mesma que te leva a partir!» De facto, em que pode ajudar a mudança de local, ou o conhecimento de novas paisagens e cidades? Toda essa agitação carece de sentido. Andares de um lado para o outro não te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia. Tens de alijar o peso que tens na alma; antes disso não há terra alguma que te possa dar prazer!

Temos de viver com essa convicção: não nascemos destinados a nenhum lugar particular, a nossa pátria é o mundo inteiro! Quando te tiveres convencido desta verdade, deixará de espantar-te a inutilidade de andares de terra em terra, levando para cada uma o tédio que tinhas à partida. Se te persuadires de que toda a terra te pertence, o primeiro ponto em que parares agradar-te-á de imediato. O que tu fazes agora não é viajar, mas sim andar à deriva, a saltar de um lado para o outro, quando na realidade o que tu pretendes - viver segundo a virtude - podes consegui-lo em qualquer sítio».

Séneca, Cartas a Lucílio

Ana Tapadas

quinta-feira, 4 de março de 2010

Da Justiça


Recordo a majestade da velha taifa de Zaragoça abrigada aos pés da Virgem do Pilar e sinto o peso imponente da Espanha que emerge entre restos de Império Romano e pedaços do califado de Córdoba.

Em Aragão, olhando o rio Ebro, faço sínteses mentais sobre a Justiça e quiçá esta chuva que tomba, insistente e miúda, lave a alma mesquinha de gentes quezilentas e cheias de si mesmas.
Aqui a História pesa e Reis Católicos já não se chamam Fernando e Isabel...


Medito, mas não rezo. Que Credo gostariam que professasse? As religiões do Livro desencontram-se nas esquinas da História e rituais que são hábitos só vestem de trapos túmulos caiados.



O meu Credo é de silêncio e sei que a Primavera germinará no coração do Homem justo.


Fotografias de José Alves: Saragoça