Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

2012




Vladimir Kush


A Forma JustaSei que seria possível construir o mundo justo 
As cidades poderiam ser claras e lavadas 
Pelo canto dos espaços e das fontes 
O céu o mar e a terra estão prontos 
A saciar a nossa fome do terrestre 
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia 
Cada dia a cada um a liberdade e o reino 
— Na concha na flor no homem e no fruto 
Se nada adoecer a própria forma é justa 
E no todo se integra como palavra em verso 
Sei que seria possível construir a forma justa 
De uma cidade humana que fosse 
Fiel à perfeição do universo 

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco 
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo 



Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas



FELIZ ANO NOVO, MEUS AMIGOS!


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Por estes dias, sejam felizes, meus amigos.

5772 - Hanoukkah - de 21 a 28 de Dezembro
2011 - Natal - 25 de Dezembro (Presépio de Estremoz)
1432 - Ashoura - 6 de Dezembro

BOAS FESTAS, MEUS AMIGOS!
Ana

domingo, 18 de dezembro de 2011

Muro de insegurança

americanos, Iraque, 2011
Anónimos, Iraque, 2011

 Açores, 2003



Não se pode manter a paz pela força, mas sim pela concórdia.
Albert Einstein

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Eduardo Lourenço - Prémio Pessoa 2011





“Que o português médio conhece mal a sua terra – inclusive aquela que habita e tem por sua em sentido próprio – é um facto que releva de um mais genérico comportamento nacional, o de viver mais a sua existência do que compreendê-la.”
“Citar um autor nacional, um contemporâneo, um amigo ou inimigo, porque nele se aprendeu ou nos revimos com entusiasmo, é, entre nós, uma raridade ou uma excentricidade como usar capote alentejano. A referência nobre é a estrangeira por mais banal que seja, e quem se poderá considerar isento de um reflexo que é, por assim dizer, nacional?”
“Os Portugueses vivem em permanente representação, tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo.”
“Mas seja qual for a interpretação ideológica de Camões, não é possível, para ninguém, separar o seu canto épico da apologia histórica de um povo enquanto vanguarda de uma fé ameaçada na Europa do tempo e de um império igualmente guarda-avançada da expressão comercial e guerreira do Ocidente. É essa a «matéria» textual e moral do Poema.”
“Em princípio, todo o português que sabe ler e escrever se acha apto para tudo, e o que é mais espantoso é que ninguém se espante com isso.”


 Eduardo LOURENÇOO Labirinto da Saudade, Gradiva, 2005.




“Eduardo Lourenço (…) sabe que todos nós somos espíritos perdidos no tempo e que, apesar das palavras não poderem quebrar a nossa irredutível solidão, elas podem pelo menos proporcionar um pouco de conforto no vazio da infinitude”.
Pascal Avot.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Abandono

google

Sábado de cinza. Chuva em túnel. Vamos friorentos pela planície húmida, numa procura sem rumo. Queremos, tão só, fugir da rotina dos dias iguais durante os quais exigimos conhecimento a meninos sem futuro. É esse sentimento trágico que nos semeia os dias e desgasta sem esperança. Sempre vendemos promessas de dias melhores a troco de exigência e de trabalho. Assim acontecia, geração após geração. Professor era isso.
Olho com nostalgia o ondulado dos campos alagados. Alguns rebanhos insistem em procurar alimento nos terrenos incultos. Incultos assim os foram deixando, na mira de riquezas mais fáceis. Conheço os ciclos desta terra, poderia ser esta a minha vida. Chego a lamentar que não o tenha sido, numa espécie de remorso original.
Chove ainda. A água vai perder-se por aí até à secura do Verão. Em salas enceradas jovens políticos deslumbrados escorregam e jamais olharão este país. Ver há-de ser sempre um acto de amor.
Como teremos futuro sem ordenar este país interior? Sem nos vermos por dentro?

Ana






quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

José Marchena, «L'Avis aux espagnols»

(google)


«Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Reino.
Nas cortes celebradas em Lisboa no ano de 1646 [8 de Dezembro] declarou el-rei D. João IV que tomava a Virgem Nossa Senhora da Conceição por padroeira do Reino de Portugal, prometendo-lhe em seu nome, e dos seus sucessores, o tributo anual de 50 cruzados de ouro

 Dicionário Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Volume V, pág. 122.Edição electrónica



Ibéria




PESADELO DE D. QUIXOTE

Sancho: ouço uma voz etérea
Que nos chama...
Ibéria, dizes tu?!... Disseste Ibéria?!
Acorda, Sancho, é ela a nossa dama!

Pois de quem hão-de ser estes gemidos?!
Pois de quem hão-de ser?!
Só dela, Sancho, que nos meus ouvidos
Anda o seu coração a padecer...

Ergue-te Sancho! Quais moinhos?! Quais?!
Ai! Pobre Sancho, que não sabes ver
Em moinhos iguais
Qual deles é só moinho de moer!...

Miguel Torga



«O meu iberismo é um sonho platónico de harmonia peninsular de nações. Todas irmãs e todas independentes.»   Miguel Torga, 13/9/88





Personalidades iberistas Portuguesas

(fonte: Wikipédia)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Quem recorda Nana Mouskouri (Nανά Μούσκουρη)?


Fonte: Mesquita


Fonte: Mesquita


Fonte: Mesquita
Fonte: Mesquita


Conhecida mundialmente como Nana, estabeleceu-se com sua família em Atenas, onde o seu pai trabalhava como projeccionista em cinema. Nesta época, bastante jovem, começou o seu amor e talento pelas artes, principalmente pela música. Gravou dezenas de músicas em várias línguas, incluindo o grego, inglês, francês, espanhol, alemão, português e italiano, entre outras. O que muita gente não sabe é que esta cantora é também uma excepcional aguarelista.

Aqui ficam alguns exemplos.




Nana Mouskouri

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

1 de Dezembro


Orquestra de Harmónicas
http://www.harmonicas-ponte-sor.com/cartaopt.htm



Ainda há pouco o sol iluminava o parque. Apetecia passear sob os vinte graus deste Dezembro que começa. Agora a temperatura cai a cada hora, talvez desça do zero, sem qualquer pudor. Amanhecerá o parque branquinho de geada branca a brilhar na matina.
Terra de contradições, a minha.
Republicanos convictos vestiram na noite passada os velhos capotes e calçaram botas pesadas para celebrarem a Restauração da independência. É assim em cada ano. Este ano instalou o paradoxo numa dúvida de contradições evidentes. Por todo o concelho se celebrará - como acontece desde 1640 - este dia singular. A vinte quilómetros a banda sairá à rua e troará uma música militar.
O Hino da Restauração ecoa ainda, perante a indigência cultural que grassa nos dirigentes nacionais.

Somos alentejanos pacíficos e orgulhosos. Olhamos em frente. O horizonte é largo.

Ana




quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Das 7 às 23 horas...



Cruzeiro Seixas



 O funcionário cansado
  
   A noite trocou-me os sonhos e as mãos
   dispersou-me os amigos
   tenho o coração confundido e a rua é estreita
   estreita em cada passo
   e as casas engolem-nos
   sumimo-nos
   estou num quarto só num quarto só
   com os sonhos trocados
   com toda a vida às avessas a arder num quarto só
  
   Sou um funcionário apagado
   um funcionário triste
   a minha alma não acompanha a minha mão
   Débito e Crédito Débito e Crédito
   a minha alma não dança com os números
   tento escondê-la envergonhado
   o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
   e debitou-me na minha conta de empregado
   Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
   Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
   Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
    
   Soletro velhas palavras generosas
   Flor rapariga amigo menino
   irmão beijo namorada
   mãe estrela música
   São as palavras cruzadas do meu sonho
   palavras soterradas na prisão da minha vida
   isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
   num quarto só
     
António Ramos Rosa, 1960


 Andam assim os meus dias de trabalho...



sexta-feira, 11 de novembro de 2011

11 de Novembro

Helena de Tróia, por Evelyn De Morgan


Helena não era de Tróia. Era, no entanto, uma jovem mulher bela. O seu dinamismo exuberante fazia dela uma chefe. Helena era uma chefe. Os jovens adoravam-na e eu sabia que, actividade que planeasse, por mais ambiciosa que fosse, se haveria de realizar. Nisso nos igualávamos e ríamos juntas sempre que os nossos planos desafiavam as possibilidades. Lena era minha amiga. 
Caminhávamos sessenta quilómetros, pelo Carnaval, no Campo Militar de Santa Margarida e, noite alta, em torno da fogueira ríamos ainda até de madrugada, apesar de ela ter sempre bolhas de cansaço. Virávamos as meias do avesso para as costuras não magoarem, mas a Lena não resistia. Como os nossos maridos se lamuriavam do cansaço - meninos grandes, o Jaime e o Torres!
Caminhávamos por montes e vales montadas em sonhos: Alentejo de exuberâncias e de extremos, trilhos a afugentar o horizonte; Castro Laboreiro, Entre-Ambos - Os Rios, saltitando sob a chuva miudinha; imensidades de Espanha  com Igrejas ao fundo, Burgos que já reconhecíamos tão bem; aldeias Bascas alcantiladas em deleites de «quero ficar aqui»; Pirinéus; França gentil e nobre, Provença de encantadas lendas e heresias - «Façamos chichi neste campo de lavanda tão azul» - e eu sempre incomodada, moldada por uma educação tão rígida! Santander e a praia privativa donde os miúdos foram deserdados... Itália e Áustria no Tirol. A Suíça, quase um mês, viajada palmo a palmo num encanto demorado. Montanhismo, escalada, caminhada, café aguado bebido em abrigos da floresta alpina...sentada num tronco, rabisco poemas. Glaciares e calores de Agosto. 
Caminhávamos, já passados os quarenta anos. Mochilas nas costas. Botas bem grossas. Quem diria? Subíamos e descíamos montanhas e desfiladeiros. Escorregávamos na erva, ríamos desenfreadas. 
Castanhadas, tantas! A Senhora dos Prazeres, branca ermida com adro, onde dormíamos a seguir ao som de violas dedilhadas noite dentro. Vigiávamos o sono dos garotos, amedrontados das nossas histórias no escuro. 
Helena telefonou-me num dia de fim do meu Agosto algarvio e disse-me que estava hospitalizada, sentada na cama a ler. Surpresa a minha, pois a deixara há uns dias, sequer uma semana. Estava constipada e tossia ligeiramente.
Estávamos em 2005. A 11 de Novembro desse ano a Lena partiu numa viagem sem regresso. Helena, corpo robusto, nunca fumara e respirou comigo o ar puro da vida sã. Helena morreu, o seu pulmão a levou. 

Helena não era de Tróia. Helena era minha amiga. Por ela não se fez nenhuma guerra, mas conduziu gerações de escuteiros e eu, sua amiga descrente e desalinhada, acompanhava-a para conduzir os seus «escutas» que eram também os meus alunos. Laços bem fortes uniram gerações, muralhas de uma ilha íntima bem mais bela que a velha Tróia.
Helena, minha amiga.

Ana


terça-feira, 8 de novembro de 2011

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

«Esperando os bárbaros», Κωνσταντίνος Πέτρου Καβάφης




Grécia, José Alves






Mas que esperamos nós aqui n'Ágora reunidos?
É que os bárbaros hoje vão chegar!

Mas porque reina no Senado tanta apatia?
Porque deixaram de fazer leis os nossos senadores?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
Que leis hão­de fazer os senadores?
Os bárbaros que vêm, que as façam eles.

Mas porque tão cedo se ergueu hoje o nosso imperador,
E se sentou na magna porta da cidade à espera,
Oficial, no trono, co'a coroa na cabeça?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
O nosso imperador espera receber
O chefe. E certamente preparou
Um pergaminho para lhe dar, onde
Inscreveu vários títulos e nomes.

Porque é que os nossos dois bons cônsules e os dois pretores
trouxeram hoje à rua as togas vermelhas bordadas?
E porque passeiam com pulseiras ricas de ametistas,
e porque trazem os anéis de esmeraldas refulgentes,
por que razão empunham hoje bastões preciosos
com tão finos ornatos de ouro e prata cravejados?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
E tais coisas os deixam deslumbrados.

Porque é que os grandes oradores como é seu costume
Não vêm soltar os seus discursos, mostrar o seu verbo?

É que os bárbaros hoje vão chegar
E aborrecem arengas, belas frases.

Porque de súbito se instala tal inquietude
Tal comoção (Mas como os rostos ficaram tão graves)
E num repente se esvaziam as ruas, as praças,
E toda a gente volta a casa pensativa?

Caiu a noite, os bárbaros não vêm.
E chegaram pessoas da fronteira
E disseram que bárbaros não há.

Agora que será de nós sem esses bárbaros?
Essa gente talvez fosse uma solução.




sábado, 22 de outubro de 2011

Bárbaros matam tiranos


Giorgio De Chirico

"Nunca se esquecem as lições aprendidas na dor"

Provérbio africano



Gold Dust by Ibrahim al-Koni


O desafio de escrever o deserto
O romancista e contista tuaregue líbio Ibrahim al-Koni, cujo trabalho está profundamente enraizado nas suas origens no deserto, é um dos autores mais originais e inovadores do mundo árabe.
Não poderemos nunca confundir a cultura de um povo com a tirania ou com a barbárie que presenciamos.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A Cegueira da Governação






Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos Reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Príncipes, Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados, que estais em seu lugar: vedes as calamidades universais e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes o abuso do costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de tantas almas, dentro e fora da Cristandade? Ou o vedes ou não o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra: vedes as obrigações que se descarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.
Padre António Vieira, in Sermões, séc. XVII

sábado, 8 de outubro de 2011

A Feira


 06 de outubro - quinta-feira. Celebração de Mokosh,


Ao longe o ruído da turba. Sol de fim de Verão, quente, choco. Ardem, em turbilhão, pensamentos dispersos, diversos. Um cheiro absurdo regressa dos idos medievos. Sujidade e fritos. Farturas de vida e de sonhos que partem neste suave suão. Sopro perturbador para mulheres inquietas. A feira.
Vinham em Outubros de primeiras chuvas, dos arredores onde habitavam aldeias brancas de casas térreas feitas de argila em paredes grossas. As mulheres caiavam, de pé, o branco brilhante e repetiam em tecituras contínuas esse gesto milenar de que o mediterrâneo as fez herdeiras. Caiavam em Outubro para apagar o Verão. A feira.
Garotos experimentavam botas duras de couro que o sebo haveria de amansar quando o gesto se repetisse vezes sem conta aos soalheiros de  Domingo. Impermeáveis, as botas haveriam de enfrentar os rigores chuvosos de vários Invernos e as solas seriam trocadas, cardadas, vezes sem conta. A feira.
Começava a escola rigorosa, ritual, passaporte para uma vida melhor - a escola sempre a sete de Outubro. Os pais levavam árvores novas que haveriam de adocicar os dias de Verão. Erguer-se-iam floridas, seriam fonte de alimento para novas vidas que mulheres trigueiras e magras carregavam nos ventres do Inverno de noites longas e leitos quentes.
A Feira de Outubro dominava a vila, a vida. A Feira de Outubro iniciava o ciclo. 
Hoje, a feira é um caos na desordem dos dias.

Ana




quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Tomas Tranströmer - o Nobel e Portugal



Nobel da Literatura 2011






FUNCHAL

O restaurante do peixe na praia, uma simples barraca, 
construída por náufragos.
Muitos, chegados à porta, voltam para trás, mas não assim 
as rajadas de vento do mar.
Uma sombra encontra-se num cubículo fumarento e assa 
dois peixes, segundo uma antiga
receita da Atlântida. Pequenas explosões de alho.
O óleo flui nas rodelas do tomate. Cada dentada diz-nos que
o oceano nos quer bem,
um zunido das profundezas.

Ela e eu: olhamos um para o outro. Assim como se trepássemos 
as agrestes colinas floridas,
sem qualquer cansaço. Encontramo-nos do lado dos animais, 
bem-vindos, não envelhecemos. Mas já suportámos tantas 
coisas juntos, lembramo-nos disso, momentos em que 
de pouco ou nada servíamos (por exemplo, quando esperávamos 
na bicha para doarmos sangue ao saudável gigante –
ele tinha prescrito uma transfusão).
Acontecimentos, que nos poderiam ter separado, se não nos tivessem 
unido, e acontecimentos
que, lado a lado, esquecemos – mas eles não nos esqueceram!
Eles tornaram-se pedras. Pedras claras e escuras. Pedras de 
um mosaico desordenado.
E agora mesmo acontece: os cacos voam todos na mesma direcção, 
o mosaico nasce.
Ele espera por nós. Do cimo da parede, ilumina o quarto de hotel, 
um design, violento e doce,
talvez um rosto, não nos é possível compreender tudo, mesmo 
quando tiramos as roupas.

Ao entardecer, saímos.
A poderosa pata azul escura da meia ilha jaz expelida sobre o mar.
Embrenhamo-nos na multidão, somos empurrados, amigavelmente, 
suaves controlos,
todos falam, fervorosos, na língua estranha.
“ Um homem não é uma ilha “

Por meio deles fortalecemo-nos, mas também por meio de 
nós mesmos. Por meio daquilo que
existe em nós e que o outro não consegue ver. Aquela coisa 
que só se consegue encontrar
a ela própria. O paradoxo interior, a flor da garagem, a válvula 
contra a boa escuridão.
Uma bebida que borbulha nos copos vazios. Um altifalante 
que propaga o silêncio.
Um atalho que, por detrás de cada passo, cresce e cresce. 
Um livro que só no escuro se consegue ler.





LISBOA

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas
subidas.
Havia duas prisões. Uma delas era para os gatunos.
Eles acenavam através das grades.
Eles gritavam. Eles queriam ser fotografados!

"Mas aqui", dizia o revisor e ria baixinho, maliciosamente,
"aqui sentam-se os políticos". Eu vi a fachada, a fachada, a fachada
e em cima, a uma janela, um homem,
com um binóculo à frente dos olhos, espreitando
para além do mar.

A roupa pendia no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma dama de Lisboa:
Isto é real, ou fui eu que sonhei?

Tomas Tranströmer, poeta sueco


tradução de Luís Costa






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EM PORTUGUÊS:
21 poetas suecos, publicado em 1981 pela editora Vega, uma obra organizada por Vasco Graça Moura e Ana Hatherly