Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Memoricídios


Texto Editora


« "A nossa memória já não existe. O berço da civilização, da escrita e das leis foi queimado. Só restam cinzas." Ouvi este comentário em Bagdade a um professor de História Medieval, a quem detiveram,  poucos dias depois, por pertencer ao Partido Baas. Quando disse isto,  abandonava a moderna estrutura da universidade, de onde tinham saqueado, sem excepção, os livros da biblioteca e destruído aulas e laboratórios. Eu estava sozinho junto à entrada», coberto por uma sombra sem pausas, e apenas pensava, quiçá em voz alta, ou não pensava, que a sua voz fazia parte desse vasto, interminável e contínuo rumor que caracteriza, por vezes o Médio Oriente. Chorava enquanto me olhava. Creio que estava à espera de alguém, mas quem quer que fosse nunca chegou, e poucos minutos depois viu-o afastar-se, sem rumo, bordejando uma cratera enorme aberta por um míssil junto do edifício». (pág. 7)


Assim começa o livro que fala da destruição dos livros ao longo da História. Nele me embrenho...

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Eco IV - Na Biblioteca de Nínive





Nínive, Hans Vredeman de Vries



Passeio, sereno,  pelas ruas de Nínive.
A cidade ofusca pela beleza - ou não fora esse mesmo o significado da palavra com que escrevemos o seu nome: Nínive, ou seja, «A Bela». O Tigre desliza como um pedaço de luz, e sei que o lado por onde caminho se situa a ocidente. Sábios que frequentam o zigurate há muito mo confirmaram.
«Quando cheguei à escola, de manhã, recitei a minha tábua, almocei, preparei a minha nova tábua, escrevi-a, terminei-a e depois marcaram-me o meu trabalho oral...quando a aula terminou, regressei a casa, entrei e encontrei o meu pai sentado. Falei-lhe do meu trabalho escrito, recitei-lhe a minha a minha tábua e ele ficou encantado...» (tábua suméria, há 4 000 anos). É assim o meu dia-a-dia. Sei que, em território distante, os homens não sabem ler nem conhecem a escrita, por isso este lugar irradia conhecimento como um sol.
Perco-me na Biblioteca que Assurbanipal II mandou reunir. A colecção é fabulosa, escrita em sumério e acádico. As placas de argila, traçadas a cuneiforme, fazem o meu deleite. A minha curta vida não me permitirá lê-las todas, mas esse é o meu sonho oculto. Os meus temas predilectos são: o mundo natural, geografia, matemática, astrologia e medicina; manuais de exorcismo e de augúrios; códigos de leis; relatos de aventuras e textos religiosos...






escrita cuneiforme






A Literatura da sageza enche inúmeras placas. Enquanto por aqui vagueio, absorto e fascinado, recordo o Tigre que corre sereno, incauto às invasões. Os rios são o tempo e a memória, indiferentes à ignorância dos humanos. 
Nínive, esplendorosa como uma bela mulher, brilha ao luar. Regresso. De memória, como num eco, recito baixinho o escrito da tábua de argila que mais me impressionou:
« A mulher desassossegada em casa acrescenta dor ao sofrimento.
Estamos condenados a morrer: gastemos.
Teremos longa vida: poupemos.
Aquele que possui muita prata pode ser feliz.
Aquele que possui muita cevada pode ser feliz.
Mas o que nada possui pode dormir.
Pode-se ter um senhor, pode-se ter um rei, mas o homem a temer é o cobrador de impostos».(tábua suméria).


Como poderei ler todas as tábuas da Biblioteca de Nínive se lá fora, num lugar longínquo, homens forjam ainda os seus artefactos de bronze?


Ana






quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Jorge Luís Borges - reler



Creta/José Alves



O labirinto


«Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.»

(Atlas - tradução de Miguel Angel Paladino)



Minotauro/Museu de Heraklion
José Alves



Voltarei sempre: ao coração do Mediterrâneo e à leitura de Jorge Luís Borges - fazem parte da minha construção do mundo.


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A passagem das horas



Pelo Golfo de Cádiz


Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.



Álvaro de Campos [(excerto de c)]