Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

domingo, 29 de março de 2015

As arestas

Alto Alentejo, José Alves


A erosão que descai
por debaixo desta realidade
tão frouxa
tão roxa
será limada
pela madrugada
de dias claros
Então o olhar
focará cada pétala
tão quieta
neste mar
que náufrago se vai

Ana


Alto Alentejo, José Alves



Por estes dias, sejam felizes, meus amigos!



Alto Alentejo, José Alves


quarta-feira, 25 de março de 2015

«O grande desastre aéreo de ontem»

Mediterrâneo, José Alves



«Para Cândido Portinari
Menino com carneiro - Candido Portinari
«Menino com carneiro», 1953 - Portinari


Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.»


                                                                                            Jorge de Lima (1893-1963)



Alpes franceses, José Alves




terça-feira, 24 de março de 2015

Deixarei os jardins a brilhar com os seus olhos

Cá de casa, José Alves


Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos : hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.

Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.

Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a dor que me leva
aos precipícios de agosto, a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas de ar
palpitando fechado no espelho. É a estação dos planetas.
Cada noite é um abismo atómico.


E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Batem em mim as pancadas do pedreiro
que talha no cálcio a rosa congenital.
A carne, sufocam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.


Herberto Helder
Fonte: Instituto Camões

sábado, 21 de março de 2015

Como felino...

Alto Alentejo, José Alves

Lá fora a primavera assoma tímida. Pequenas alvas flores cobrem a planície, dir-se-ia que a neve desceu afoita, mas uma leve brisa vinda do Norte levanta um doce aroma e sabemos, então, que o branco manto é tecido na ternura de dias ainda por vir. 
Deambulamos por aqui, horizonte largo e céu apocalíptico. Tempo necessário à trovoada que não chega. Como felino, lince que se esgueira entre giestas, sei que não virá. 
Esta não era a Primavera prometida. A chuva há três meses não fecunda este chão. Os tempos são austeros. Não me lembro de dias assim. Um faz-de-conta apoderou-se dos homens que correm sem rumo, numa pressa infinda e desesperada que não posso comungar. O meu é o horizonte estendido que se abre, lento e decidido, no caminho da esperança renovada.


Ana

sexta-feira, 20 de março de 2015

«Como uma flor vermelha»

«Jardim de Giverny», Monet Vetor


À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.


Sophia de Mello Breyner Andresen,

Obra Poética I


                                     Que a Primavera vos seja suave, mas renovadora!

quarta-feira, 18 de março de 2015

«Quem decifra o código?»

Museu do Bardo, Tunes, Tunísia



(Haicais)
17
Um verso livre
esta é a nossa casa


18
Não consigo pegar o que me dizes
a erva agarra-se às paredes

19
Entre nirvana e catarse
o inesperado


20
Tira os sapatos antes de entrar
no umbral do templo do coração


                                     Youssef Rzouga, Poeta da Tunísia

Museu do Bardo, Tunes, Tunísia

"
...nós somos pássaros migradores,
só para voar como deve ser em
forma de um coração gigante,
de baixo e alto
e no sentido inverso dos ponteiros
de um relógio,
só para ter a possibilidade
de compor outra canção paralela
ao comboio rápido.
Dó, ré, mi, fá, sol!...."



Youssef Rzouga, Poeta da Tunísia



Porta tradicional, Tunísia (google)

QUEM DECIFRA O CÓDIGO?

      "Eu irei..."
     aqui desde a mais remota antiguidade
     tudo me parece velho
     o alter ego
     o coração e seus arredores
     a cabeça
     e o que parece muito amigo
     quem decifra o código?
     Estas palavras já foram felizes
     em algum lugar

     Algo meu
     não compartilho contigo
     não digo a ninguém
     é a última coisa que se perde
     entre o arco-íris e o Arco do Triunfo
     tudo se perde
     um olhar carregado de tristeza
     um ciclo de raiva cega
     tudo gira
     ao redor da capa de ozónio
     a terra a cabeça etc...

     Entre o alfa e o ómega
     tudo se perde
     um suposto amigo
     uma rosa
     eu mesmo Youssef Rzouga
     todos até Victor Hugo
     quem decifra o Código?
     Estas palavras tornarão
     a alegrar outros lugares

     "Eu irei..."
      em busca de outro "abri.."
      um labirinto me sorri
      todos vivem sem abrigo
      entre Romeu e Julieta
      há um falso testemunho
      uma natureza morta
      Desde o umbigo é todo o universo
      quem decifra o código?

      "Eu irei..."
      tudo me intriga
      o alter ego
      o silêncio dos medíocres
      a bondade de um tal Youssef Rzouga
      tudo...

      "Eu irei..."
      não posso viver no passado
      estas palavras deverão alegrar
      outros lugares

    tradução/espanhol/lilian reinhardt



                                    Youssef Rzouga, Poeta da Tunísia





sexta-feira, 13 de março de 2015

Mandamentos

Jacques-Louis David, A morte de Sócrates


        Não questiones, que te oferecem cicuta.





Pirâmides no Sudão, Álvaro Figueiredo



Não acredites em lugares comuns, olha as pirâmides do Sudão.


Deus Atum - Egipto




Olha o Deus Atum, nas ruínas da Humanidade anterior.



Arte etrusca, Itália



Não te apresses, que a nova Era medieval assoma no horizonte.



Sudão, Álvaro Figueiredo



                                     Cómodos silêncios se instalam.



(Existem mais de duzentas pirâmides no Sudão.)