Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

domingo, 15 de novembro de 2020

Joana Lapa

 

                                                                    Maria João Fernandes


Às vezes passeio pela memória, escorrego no tempo interior, e tenho reencontros felizes. Olho, vagamente um quadro dependurado na minha frente. Está ali há tempos. A sua autora já habitou os meus dias como o quadro se instalou na minha parede ainda há mais tempo. Ah, o Tempo que não devora tudo! Desiludam-se os Antigos...eu prefiro Sophia de Mello Breyner, 


Não se perdeu nenhuma coisa em mim.

Continuam as noites e os poentes

Que escorreram na casa e no jardim,

Continuam as vozes diferentes

Que intactas no meu ser estão suspensas.

Trago o terror e trago a claridade,

E através de todas as presenças

Caminho para a única unidade.


Maria João Fernandes foi minha professora de Literatura e eu, qual Saramago a ler Ricardo Reis (que ousadia), pensei durante algum tempo que Joana Lapa seria outra pessoa. Afinal, a minha mestra, mulher de muitos talentos - professora, crítica de arte, ensaísta, curadora, poetisa, humana de olhar claro e doce - escreve poemas por detrás de um pseudónimo. O mesmo que ali está na serigrafia de homenagem a Almada Negreiros: Joana Lapa. Conheci-a tão jovem. Acreditou tanto em mim. Ah, não sei se a não defraudei...

Aqui vos deixo um dos seus poemas: (daqui)

                                                                                       

 No litoral submerso do meu ser

a pena de uma gaivota

amante do verão

escreve os gestos da espuma.

 

O pássaro a que pertence

atravessou o sol,

as fronteiras do dia

para acordar no lilás das sombras

a ressurreição do mundo.

                         Cadernos do Vento



                                                                           «La poesía nos viste de resurrección»

                                                                                          Alfredo Pérez Alencart

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Intimamente

 

G. Ribeiro Teles


Olho pela vidraça. Há flores e folhagem verde, como se a Natureza se distendesse após os calores tórridos deste Verão que aturdiu e cegou os pássaros cansados. O cansaço da corrida diária pode arredar a adrelina dos dias. Silêncios. Pássaros tardios. Silêncios.
Tu não sabes e não podes adivinhar. Cada dia é um limite. Cada dia dia o limite se alonga como um horizonte na planície. Cada acção se paga, cada deslize se reflecte no narcísico lago. A prosa dos dias.
Trabalhamos em universos infinitos: virtuais, parciais e reais... mas já perdemos a noção do Real. Ricardo Reis vai ajudando a aceitar o destino. O seu ritmo cadencia a minha voz...Os sábios de Alexandria ficaram próximos, descemos até à Pérsia. Percebeste que o planeta ficou minúsculo, eu percebi que os dias se tornaram muito pequenos e que, neles, não cabe a minha vida toda. 
Quero que cumpras a tua vida e que não cedas à desesperança. Sorrio como posso e, intimamente, desejo que o meu olhar ainda te conceda algum brilho. Às vezes penso que talvez se tenha apagado a velha luz, que os anos desbotem a empatia e que tudo se tenha tornado asséptico.


                                                                         in, Jornal d Madeira