Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

São os tempos!

 

Alto Alentejo, Janeiro 2021

Quebro o gelo, com uma passada larga. Conheço o desenho de cada passo, pois em cada dia repito esta passagem. O parque amanhece e carrega-se da renovada esperança de mais um dia que desponta. A luz limpa é um logro. A friagem desceu do zero e ela lê melhor a realidade.
Caeiro falar-te-ia do «cubo da sensação», mas eu falo-te deste animal do Sul e do Sol que sente o desconforto do gelo.

Alto Alentejo, Janeiro 2021

Podes imaginar a samarra verde, a pele pálida, a máscara ironicamente aconchegante nesta alba...só não sabes do calor íntimo e revoltado. Ah! Não sabes como a injustiça revolta! Como a intempérie é, talvez, necessária e urgente...
Não culpes este chão. Ele conhece os tiranos que o pisaram. Não culpes este chão!

Alto Alentejo, Janeiro 2021

A intempérie chegará! Os sonhos jorrarão como esta água, a cântaros...e lavarão os rios que secaram no Verão. 
Não bramas, aturdindo a ignorância, pois dela se constroem as grades. Só as vozes não se aprisionam, só o sopro íntimo erguerá a obra. Amainará a chuvada. 

Alto Alentejo, Janeiro 2021

Caminho no parque, sob a chuva que fustiga, com uma passada larga. 
Do lado de lá o infindável trabalho dos dias: arremessar sementes ao Futuro em salas plenas de esperança!
Não culpes este chão!



segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

E...as festas acabaram.

 

De volta...

José


E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

 

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?

 

E agora, José?

Sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio — e agora?

 

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

 

Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse...

Mas você não morre,

você é duro, José!

 

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja a galope,

você marcha, José!

José, para onde?



Carlos Drummond de Andrade