Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

quarta-feira, 13 de abril de 2022

A Deus

 

"Young Mother Sewing", Mary Cassatt

                                                                                                                    

    Os que muito amo partem, assim, na Primavera. Quiçá para que o meu olhar triste possa repousar na planície e o meu luto se possa transmudar pelas cores efusivas que despertam a nostalgia.

Sempre me tiveste contigo e acreditavas que tenho a força da tua mãe e a doçura de ti própria...só não sei se mereci essa crença.

      A Deus, querida mãe. (A minha mãe partiu a 8 de Abril)





Apesar das ruínas e da morte, 
Onde sempre acabou cada ilusão, 
A força dos meus sonhos é tão forte, 
Que de tudo renasce a exaltação 
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

                                       Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Europa

 

Adolfo Casais Monteiro



Andam corridos os dias, como a brisa que varre a Ibéria. Do longe, apenas os ecos da guerra como uma hiena estranha que gritasse dos confins da minha planície. O tempo esgueira-se como uma sombra fugidia que se aquieta nas noites breves.
Temos o dever de sair dos pequenos mundos e das fechadas conchas em que nos abrigamos. Chego a olhar com desdém os poemas do "eu" que, agora, preenchem os meus dias de trabalho. O individualismo pós-Moderno não me preenche esteticamente, jamais teve essa capacidade. 
Ocorre-me, então, que alguns dos mais construídos poetas, teóricos e valorosos vultos da cultura portuguesa sempre ficaram excluídos de todos os programas escolares, mesmo os universitários.
Assim, remando contra essas marés, aqui deixo um poeta extraordinário para os dias que habitamos - Adolfo Casais Monteiro.

(excerto)



III

Na erma solidão glacial da treva

os que não morreram velam.


Em vagas sucessivas de descargas

A morte ceifou os nossos irmãos.


O medo ronda,

o ódio espreita.

Todos os homens estão sozinhos.


A madrugada ainda virá?


Vão caindo um a um na luta sem trincheiras,

e a noite parece que não terá nunca madrugada,

mas cada gota de sangue é agora semente de revolta,

da revolta que varrerá da face da terra

os sacerdotes sinistros do terror.

A revolta a florir em esperança

dos braços e das bocas que ficaram...


A traição ronda,

A morte espreita.


Uma comoção de bandeiras ao vento...

Clarins de aurora, ao longe...


Os que não morreram velam.


IV

Eu falo das casas e dos homens,

dos vivos e dos mortos:

do que passa e não volta nunca mais...

Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,

ah, não me venha com teorias!

eu vejo a desolação e a fome,

as angústias sem nome,

os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.

E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,

uma insignificante parcela de tragédia.

Eu, se visse, não acreditava.

Se visse, dava em louco ou em profeta,

dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,

— mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.

Olho num pasmo sem limites,

e fico sem palavras,

na dor de serem homens que fizeram tudo isto:

esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,

esta lama de sangue e alma,

de coisa e ser,

e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,

se o ódio sequer servirá para alguma coisa...



Deixai-me chorar — e chorai!

As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,

de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,

e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,

por momentos será nosso um pouco de sofrimento alheio,

por um segundo seremos os mortos e os torturados,

os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,

seremos a terra podre de tanto cadáver,

seremos o sangue das árvores,

o ventre doloroso das casas saqueadas,

— sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...


Eu não sei porque me caem lágrimas,

porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,

eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,

eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,

eu que estou na minha casa sossegada,

eu que não tenho a guerra à porta,

— eu porque tremo e soluço?


Quem chora em mim, dizei — quem chora em nós?


Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:

As ruas são ruas com gente e automóveis,

Não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,

e a miséria é a mesma miséria que já havia...

E se tudo é igual aos dias antigos,

Apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,

eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,

sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,

sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,

uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...


“Europa” de Adolfo Casais Monteiro (Confluência, s.d.) é um poema premonitório. Foi lido aos microfones da BBC, na emissão de língua portuguesa, a 23 de Maio de 1945, por António Pedro. Era o fim da guerra europeia e havia uma grande esperança – a de que, depois da tragédia terrível, que tinha deixado o velho continente exangue, seria possível lançar as bases de uma paz duradoura. Como disse José Augusto Seabra, no prefácio à edição de 1991 (Nova Renascença): “Pela voz forte e timbrada de um intelectual então emigrado, António Pedro, esse poema, da autoria de Adolfo Casais Monteiro, um dos nossos mais corajosos poetas resistentes à ditadura, acordou em quantos o escutavam a esperança de que também para Portugal a hora da liberdade iria soar, na nova Europa que se erguia sobre o sangue e os escombros decorrentes da criminosa aventura totalitária hitleriana”.

                                                                                                                           

Guilherme d' Oliveira Martins



António Pedro, 1940