Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

terça-feira, 10 de novembro de 2009

As viagens são um regresso...


fotografia aqui

Publico, hoje, para os meus amigos, um «post» de Fernando Campanella. Aqui vos deixo a prova viva de que a lusofonia traz num fio da memória a Língua que somos e nos dá um rosto trazido de algures...lá onde nasceram os mitos. Bacia serena de algum mar interno, por onde andámos, velhos persas sem rumo, gregos por ruas de Alexandria quando a cidade vivia um apogeu antigo e rumávamos a Rodes, sabendo que Ítaca estava distante.
Que rumor é este que trazemos na nossa Língua?


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nanologica.net
Alentejo



Eu, que não vivi o Alentejo,
que não voei com as cegonhas
sobre suas albufeiras ao entardecer
( nem em suas quintas pernoitei)

e que não cantei odes
à glória de um D.Manuel e suas esquadras
( nem o Tejo naveguei)

que às suas capelas
não me desfiz dos ossos,
não me embriaguei do néctar de seus deuses
nem de sua flor mais bela
em Évora me enamorei,

eu, disso tudo,
por descompasso dos astros,
me privei.

Mas, oh, fado lusitano,
oh, alma dolente e migrante,
tua nostalgia,teu estar nunca estando,
esta sede por outros mundos
eu herdei

Fernando Campanella



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MARES NUNCA D' OUTREM NAVEGADOS

Escrever sobre o Alentejo sem nunca ter estado em Portugal? Seria como falar do outono de New England sem ter visto in loco as tonalidades de suas folhas nessa específica estação do ano. Ou como falar dos ursos que em nosso inverno jamais vieram hibernar.

E no entanto falamos. E como poetas, cantamos, em nosso ritmo próprio, tanto as paisagens que nos são peculiares, tão nossas, como as que são de outros. Cantamos nossas montanhas, se as temos, nossas planícies, se as desbravamos, nossa gente com quem convivemos. Mas também descrevemos longos desertos que nunca percorremos, divagamos sobre galáxias que jamais viremos a conhecer: os tais 'mares' nunca d'antes, nunca d'outrem navegados.

"Para conhecer o mundo/ Não é necessário viajar pelo mundo..."*, dizia Lao Tsé. Com esses versos, o velho, lendário, mestre nos leva a refletir sobre o verdadeiro conhecimento, tão difícil como necessário, do eu mais profundo, com seus mitos.

Especialmente quando escrevemos sobre o nosso e os outros mundos, é o espaço mítico que adentramos, a nossa realidade interna, apossando-nos da geografia própria, ou alheia, apenas para transformá-la em símbolos, em matéria de sonho.


Konstantinos Kaváfis em seu poema 'Ítaca' empreende uma viagem a essa ilha grega, porém é um périplo interior, um retorno ao alumbramento dos sonhos que lhe povoam a alma. Não é a Ítaca física, de sua época, com suas vinhas, seu turismo pouco desenvolvido, a que visita, mas a terra de Odisseu, o território mítico:

“...Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
Bem compreenderás o sentido das Ítacas.”

(Ítaca, Konstantinos Kaváfis, trad. de Haroldo de Campos)

Escrevo sobre o Alentejo, pois, sem nunca ter estado em Portugal. Pelo converso, um alentejano poderia escrever sobre Minas sem minha região ter visitado. Eu o entenderia: o imaginário não se limita ao tempo-espaço, tem a sua característica dinâmica por onde tramita todo o universo.

A Pasárgada do Bandeira, a Bizâncio de Yeats... O mito é recorrente, eterno, ultrapassa o humano. Caminha com as próprias, teimosas, pernas, é de todos, e ainda não se fixa, não é prerrogativa de Ítaca, do Alentejo, de Minas, em particular, de ninguém.

Fernando Campanella

Obrigada, Fernando!


11 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Impressionante.
Eu diria que o Fernando Campanella conhece bem o Alentejo, o Tejo e parte de Portugal.
O poema é "apenas" excelente.
Por outro lado, o título que deste ao teu post é um verdadeiro achado.
Por tudo isto, os meus parabéns a ambos.
E beijos para ti, querida amiga Ana.

Bípede Implume disse...

Querida Aninha
Um contributo com muita qualidade de Fernando Campanella. Viajamos por dentro de memórias.
As fotografias escolhidas são belíssimas.
Como vai o teu trabalho? Uma boa semana.
Beijinhos
Isabel

ADRIANO NUNES disse...

Ana,

Que maravilhosa postagem! Que sublime poema! Muito grato! Ganhei a noite!


Grande abraço,
Adriano Nunes.

Fernando Campanella disse...

Bom dia, minha já querida Ana. Fiquei imensamente feliz com a postagem, a introdução que fizeste é simplesmente maravilhosa. E as fotos traduzem bem a atmosfera de nossa criação. Quando vi este trabalho em teu blog, pensei: vocês, portugueses, fizeram o caminho de vinda,nós, brasileiros, o caminho de volta. Chegada e partida são ciclos da alma. Bjos, lindo dia para vc.

Dalva Nascimento disse...

Essas memórias são mesmo um presente! Campanella é um mestre na arte da poesia e você, minha querida amiga, uma alma muito sensível e acolhedora!

Um beijo grande em ti!

Gerana Damulakis disse...

Uma postagem maravilhosa e, ainda assim, estou dizendo pouco. Lindo, lindo!!! Imagens e palavras. Estou emocionada. Quando isto acontece, volto para reler, sentir de novo tantas referências ricas para mim em seus significados.

Gerana Damulakis disse...

Eu sou assim, volto, releio e comento outra vez.
Belíssimo, Fernando Campanella. Quem agradece sobre nós, leitores do Rara Avis.

Estrofe inesquecível, para guardar na alma:
Mas, oh, fado lusitano,
oh, alma dolente e migrante,
tua nostalgia,teu estar nunca estando,
esta sede por outros mundos
eu herdei

Juℓi Ribeiro disse...

Ana:

Maravilhosa postagem!

Já tive o privilégio de ler
os textos e poesias de Fernando
como também também de ver seu trabalho como fotógrafo.
Ele possui uma sensibilidade imensa
e um talento enorme.

Adoro visitar o seu blog.
Beijo.

Luma Rosa disse...

Descobri o Fernando Campanella no último "Abre Aspas", quando a Dalva do blogue "infinito Particular", fez lhe uma homenagem. E qual não foi minha surpresa, descobrir que ele mora em minha cidade natal. Conversei com minha mama e ela disse-me que conhece 'quase' a família toda!
Como eu não o conheço, ao vivo, fico com as cores! (rs*)
Impressionante como o poeta criou asas e percorreu caminhos desconhecidos!
Beijus,

Fernando Campanella disse...

Oi, Ana, obrigado pelo comentário em meu blog. Você é uma escritora, sim, maravilha o texto que escreveu e já vi seus poemas também. Agora, vou confessar, também brinco com as palavras, risos....Grande abraço, minha amiga.
Ah, fiquei curioso sobre a Luma Rosa, é conterrânea minha? Onde ela mora? Bjos, vamos manter contato.

MARU disse...

Näo conhecia este autor. Mas agora me namorou!!!!
É como estar no Alentejo. Eu conheço bem, é o paraíso num cantinho deste mundo!!!
Belas fotos, que ilustram muito bem a palavras, cheias de sonhos, de côres, de perfumes....
As palavras de um coraçäo apaixoado!!!
Apaixoado por um lugar, seu lugar....
Um beijinho