Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Das 7 às 23 horas...



Cruzeiro Seixas



 O funcionário cansado
  
   A noite trocou-me os sonhos e as mãos
   dispersou-me os amigos
   tenho o coração confundido e a rua é estreita
   estreita em cada passo
   e as casas engolem-nos
   sumimo-nos
   estou num quarto só num quarto só
   com os sonhos trocados
   com toda a vida às avessas a arder num quarto só
  
   Sou um funcionário apagado
   um funcionário triste
   a minha alma não acompanha a minha mão
   Débito e Crédito Débito e Crédito
   a minha alma não dança com os números
   tento escondê-la envergonhado
   o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
   e debitou-me na minha conta de empregado
   Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
   Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
   Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?
    
   Soletro velhas palavras generosas
   Flor rapariga amigo menino
   irmão beijo namorada
   mãe estrela música
   São as palavras cruzadas do meu sonho
   palavras soterradas na prisão da minha vida
   isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
   num quarto só
     
António Ramos Rosa, 1960


 Andam assim os meus dias de trabalho...



sexta-feira, 11 de novembro de 2011

11 de Novembro

Helena de Tróia, por Evelyn De Morgan


Helena não era de Tróia. Era, no entanto, uma jovem mulher bela. O seu dinamismo exuberante fazia dela uma chefe. Helena era uma chefe. Os jovens adoravam-na e eu sabia que, actividade que planeasse, por mais ambiciosa que fosse, se haveria de realizar. Nisso nos igualávamos e ríamos juntas sempre que os nossos planos desafiavam as possibilidades. Lena era minha amiga. 
Caminhávamos sessenta quilómetros, pelo Carnaval, no Campo Militar de Santa Margarida e, noite alta, em torno da fogueira ríamos ainda até de madrugada, apesar de ela ter sempre bolhas de cansaço. Virávamos as meias do avesso para as costuras não magoarem, mas a Lena não resistia. Como os nossos maridos se lamuriavam do cansaço - meninos grandes, o Jaime e o Torres!
Caminhávamos por montes e vales montadas em sonhos: Alentejo de exuberâncias e de extremos, trilhos a afugentar o horizonte; Castro Laboreiro, Entre-Ambos - Os Rios, saltitando sob a chuva miudinha; imensidades de Espanha  com Igrejas ao fundo, Burgos que já reconhecíamos tão bem; aldeias Bascas alcantiladas em deleites de «quero ficar aqui»; Pirinéus; França gentil e nobre, Provença de encantadas lendas e heresias - «Façamos chichi neste campo de lavanda tão azul» - e eu sempre incomodada, moldada por uma educação tão rígida! Santander e a praia privativa donde os miúdos foram deserdados... Itália e Áustria no Tirol. A Suíça, quase um mês, viajada palmo a palmo num encanto demorado. Montanhismo, escalada, caminhada, café aguado bebido em abrigos da floresta alpina...sentada num tronco, rabisco poemas. Glaciares e calores de Agosto. 
Caminhávamos, já passados os quarenta anos. Mochilas nas costas. Botas bem grossas. Quem diria? Subíamos e descíamos montanhas e desfiladeiros. Escorregávamos na erva, ríamos desenfreadas. 
Castanhadas, tantas! A Senhora dos Prazeres, branca ermida com adro, onde dormíamos a seguir ao som de violas dedilhadas noite dentro. Vigiávamos o sono dos garotos, amedrontados das nossas histórias no escuro. 
Helena telefonou-me num dia de fim do meu Agosto algarvio e disse-me que estava hospitalizada, sentada na cama a ler. Surpresa a minha, pois a deixara há uns dias, sequer uma semana. Estava constipada e tossia ligeiramente.
Estávamos em 2005. A 11 de Novembro desse ano a Lena partiu numa viagem sem regresso. Helena, corpo robusto, nunca fumara e respirou comigo o ar puro da vida sã. Helena morreu, o seu pulmão a levou. 

Helena não era de Tróia. Helena era minha amiga. Por ela não se fez nenhuma guerra, mas conduziu gerações de escuteiros e eu, sua amiga descrente e desalinhada, acompanhava-a para conduzir os seus «escutas» que eram também os meus alunos. Laços bem fortes uniram gerações, muralhas de uma ilha íntima bem mais bela que a velha Tróia.
Helena, minha amiga.

Ana


terça-feira, 8 de novembro de 2011

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

«Esperando os bárbaros», Κωνσταντίνος Πέτρου Καβάφης




Grécia, José Alves






Mas que esperamos nós aqui n'Ágora reunidos?
É que os bárbaros hoje vão chegar!

Mas porque reina no Senado tanta apatia?
Porque deixaram de fazer leis os nossos senadores?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
Que leis hão­de fazer os senadores?
Os bárbaros que vêm, que as façam eles.

Mas porque tão cedo se ergueu hoje o nosso imperador,
E se sentou na magna porta da cidade à espera,
Oficial, no trono, co'a coroa na cabeça?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
O nosso imperador espera receber
O chefe. E certamente preparou
Um pergaminho para lhe dar, onde
Inscreveu vários títulos e nomes.

Porque é que os nossos dois bons cônsules e os dois pretores
trouxeram hoje à rua as togas vermelhas bordadas?
E porque passeiam com pulseiras ricas de ametistas,
e porque trazem os anéis de esmeraldas refulgentes,
por que razão empunham hoje bastões preciosos
com tão finos ornatos de ouro e prata cravejados?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
E tais coisas os deixam deslumbrados.

Porque é que os grandes oradores como é seu costume
Não vêm soltar os seus discursos, mostrar o seu verbo?

É que os bárbaros hoje vão chegar
E aborrecem arengas, belas frases.

Porque de súbito se instala tal inquietude
Tal comoção (Mas como os rostos ficaram tão graves)
E num repente se esvaziam as ruas, as praças,
E toda a gente volta a casa pensativa?

Caiu a noite, os bárbaros não vêm.
E chegaram pessoas da fronteira
E disseram que bárbaros não há.

Agora que será de nós sem esses bárbaros?
Essa gente talvez fosse uma solução.