Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

domingo, 12 de abril de 2020

Querida Sefarad


Ascent of The Spirit, Vladimir Kush


A terra da minha infância leva-me a essa pura ascensão do espírito. Estes caminhos da memória são feitos de muitos passos e de alguma fuga ao pensamento estabelecido. Trazem-me o som rangente da bicicleta sobre a areia solta.


Falcão, 2020


Este é o cheiro das estevas quentes pelos primeiros raios do sol primaveril. Viagem de retorno eterno. Vida a desabrochar, mesmo se daqui quase todos partiram. Esta é a passagem.


Aldraba, 2020


A mão, a vida física, a protecção da velha casa da avó. Mas, esta,  era só uma casa de passagem. Logo à entrada, num recanto, estava a verdadeira chave da casa que não abria esta porta. 



Crescente ou fermento, 2020, cá de casa


Façamos só mais alguns pães. Contigo, avó, aprendo o fermento. É um exercício de espera e de paciência. Com a mãe o continuo. Hoje, estou sozinha a alimentá-lo. Este cheiro genuíno, este travo ácido...vem de um lugar remoto na minha infância.



Pão alentejano, 2020, cá de casa

Duvidas, ainda? A cultura materna não se escreve nos livros. Ela é a vida, este valor intransmissível que respeitamos em cada tonalidade e que aprendemos vivendo. Não a aprendi em nenhuma das universidades por onde andei.


Bolo de bacia tradicional, 2020, cá de casa

O cheiro quente da canela e da erva-doce há-de renovar cada sentido, como um hino ou como um salmo. A tradição não significa conservar, mimetizar, teatralizar...a renovação é o significado íntimo de cada gesto. Quantas vezes te falei da sobrevivência?


Pão sem fermento, 2020, cá de casa

Hoje deitamos fora a massa velha e renovamos o antigo ritual. No nosso querido Alentejo, o cabrito há-de estar sobre a mesa e, humanos seremos...comendo!


Cabrito de leite,2020, cá de casa

Não me peças, hoje, Poesia!
Ao longe, no mais rico dos países, a desumanidade grassa e o pavor instala-se. Nós conhecemos a perseguição, o caminho da sombra, mas somos humanos e sofremos. A nossa rota invisível, como o inimigo que nos persegue, não logrará vencer a nossa Humanidade!


Nova Iorque, valas comuns, 2020
Ana


Nota: itens alimentares cá de casa!


16 comentários:

chica disse...

Gostei dos teus escritos,. tuas recordações do pão, do prato lindo! O resto é triste demais,não? FELIZ PÁSCOA ,bem abençoada, pra ti e teus! bjs, chica

Rogério G.V. Pereira disse...

Se tivesse o ânimo em baixo e precisasse de algo que o elevasse, teu texto teria esse condão...
Somos as memórias que temos
Somos as casas onde vivemos
Somos tudo o que aprendemos
Somos os avós que tivemos
Somos os caminhos que percorremos
Somos os odores que nos acalma
Somos o que nos faz sofrer a alma

Mas acima de tudo
Somos
a consciência de sermos

Elvira Carvalho disse...

Nós somos as memórias que temos, e as suas têm muito amor, e muita força.
Abraço e uma boa semana

Graça Pires disse...

Como é bom lembrar a infância, a avó, a inocência, o pão acabado de fazer… Isto é pura poesia, Ana… Gostei tanto.
Uma boa semana.
Um beijo.

Mar Arável disse...

Sem boas memórias
será dificil construir amanhãs

Bj

João Santana Pinto disse...

Uma publicação em "três tempos".

Desde a minha primeira visita neste teu espaço, ficou o deslumbramento pelo bom gosto das escolhas visuais e muito em especial, deslumbramento pelas tuas palavras, que pintas a escrever.

Tanto o pão como o bolo fizeram-me viajar aos tempos da minha infância.
Cá por casa, o pão também tem sido feito, mas sem tal arte (sorrisos), talvez falte o fermento…

"Terceiro tempo", a mensagem e sim, a Páscoa deve manter presente todos os males do mundo e o tempo que vivemos, acaba por quase fazer esquecer quem mais necessitado está, quando, ditadores mundo fora resolveram aproveitar o momento para reforçar poderes e assegurar a continuação dos seus reinados de terror, com a crise económica que se segue a fazer muito provavelmente o resto…

Beijinho

Jaime Portela disse...

"A cultura materna não se escreve nos livros".
Este ano não comi cabrito na Páscoa. Que inveja...
Ana, continuação de boa semana.
Beijo.

Edum@nes disse...

Lembranças do passado. Recordadas no presente. Cujas incertezas do futuro me assustam.

Boa noite e bons sonhos amiga Ana. Porque não é proibido sonhar. Um beijo.

Luiz Gomes disse...

Boa tarde obrigado por ajudar a divulgar o meu blog.

Majo Dutra disse...

Regressando de uma pausa...

O que li é da mais esplêndida, sentida e expressiva prosa poética!
Fiquei sensibilizada...
Também tenho dificuldade em escrever as minhas humildes composições poéticas, porque não gosto de poetizar a tristeza...

Que lindos são os pães de tua casa! Alentejanos castiços, tão difíceis de encontrar.

Desejo que tudo te corra bem, querida amiga.
Beijinhos
~~~~

alfacinha disse...

Muitas pessoas começam a fazer pão em casa, ou seja o cheiro delicioso do pão uma evasão mental em nossos anos de infância segura. O remédio mental para combater o vírus.
bjs

Olinda Melo disse...


Lugar de passagem, mas de muitas memórias,
com cheiros e sabores.

Belo texto, querida Ana. E belíssimas fotos.
A autoria é de quem sabemos ? :)

Beijos
Olinda

CÉU disse...

Sefarad-nome de filme e da Península Ibérica em Hebraico.

Um post que é um misto de recordações com situações atuais, que não deixas escapar.

Comeste cabrito? Então, e o borrego? Sim, talvez já tenha entendido: ele é do Norte.

Fizeste uma bacia? Já não faço há tanto tempo!!!!!!!!!!!!!!!

Eu estou bem. Sou mto caseirinha.

Beijos e bom domingo, Ana!

AC disse...

Não me peças poesia, dizes tu? Mas isto é poesia, saída do mais profundo de ti. Fui lendo e... emudeci.
Grato, Ana.

Hoje deixo-te um sorriso :)

Ulisses de Carvalho disse...

Oi, Ana. Fora a fotografia do prato com o cabrito, gostei muito das imagens, e tuas palavras me deram uma boa sensação de aconchego, gosto do modo que te expressas. Um abraço.

Manuel Veiga disse...

bela "narrativa" de rituais, cores e sabores
dita numa "caligrafia" muito pessoal, com evidente amor e prazer
um verdadeiro acto de Cultura

gostei muito

beijo, amiga