Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Lonjuras iniciais

 

Choça do castelo, Nougar, Baixo Alentejo

    O Outono traz essa nostalgia do momento iniciático em que olhávamos ao redor e tínhamos um redil de sonhos de que os outros cuidavam e, olhando em frente, víamos o Futuro alimentado pelo fiar de quimeras que íamos desenhando sozinhos.
    Agora, a vida traz-nos os frutos maduros de uma sementeira antiga. Outonais, perdemo-nos na lonjura da terra quente, excessiva de memórias e de fortalezas de uma História de invadidos ou evadidos.
    Amamos esses lugares ocultos nas lonjuras de caminhos de terra que serpenteiam por aí. O Alentejo é imenso e, na surpresa dos seus mitos e lendas, alberga o respirar antigo e gerador. Unidos nesse desígnio, calcorreamos rotas apagadas. Desta vez foram dez quilómetros de mau caminho por terra batida.

Vista sobre o Parque de las Brujas (Espanha)

    Olhamos, embevecidos, a outra margem do rio Ardila, anónimos, e a designação "parque de las brujas" tão querida dessas gentes do outro lado. Deles nos defendemos, e a velha povoação de Noudar (extinta por decreto?!) contra eles se fortificou sobre as ruínas dos povos, desde a pré-história ... o orgulho da nossa identidade cristalizou naquele lugar isolado. Assim, ali, no Outono até as aves se parecem calar.

Castelo de Noudar

    Romanos, visigodos árabes...sangue mestiço de tantas origens, como apurar os sonhos de todos?

Noudar


    O isolamento sempre foi a condenação encontrada pelos poderosos do mundo. E Noudar perdeu-se nas eras. Só os linces se propagam, seus guardiões e senhores.


Lince ibérico (wiki)

    Barrancos, a dez quilómetros, foi-se ajeitando nas suas pequenas casas, altiva no serpentear de lendas e serpentes encalmadas, porque moiras encantadas e perdidas de amores, se refugiaram lá no castelo de Noudar - agora sem gente, sem povoação, extinta. Barrancos, município de uma só freguesia - Barrancos! Menos de duas mil criaturas que o poder menospreza, para tal basta olhar a estrada que lá nos leva.

    
Noudar, Baixo Alentejo

     Amamo-nos nesta identidade de aventureiros, neste arfar da Natureza. Não nasceste alentejano e eu digo, a brincar, que te "alentejanaste". Nem o pequeno canivete te falha na hora de comer...e não dispensas o bolo finto para acompanhares o café forte que levamos de casa.
    


       Ana    
    



12 comentários:

chica disse...

O Alentejo e os lugares lindos que mostras! Além das belas palavras! Lindo sempre te ler! beijos praianos, chica

Maria João Brito de Sousa disse...

Que bem cairia agora um naco de bolo finto e um café um pouco menos forte!

Gostaria muito de ter visitado Noudar, mas não, nunca lá estive, nunca vi o seu castelo nem percorri a estrada que leva a esse município de duas mil almas, Barrancos.

Um beijo, Ana!

Rogério V. Pereira disse...

Belo texto a dar vontade de calcorrear os mesmos caminhos... e sabes?, nunca foi necessário me "alentejanar" pois tenho essa costela... e mais, nas veias me corre sangue mouro! E disso muito me orgulho!

Bom feriado!

São disse...

Belissima publicação, esta!!

Sou alentejana , sim, porque toda a minha ascendência é da zona de Aljustrel : nasci em Lisboa por acaso.

E, mais do que isso, os vastos horizontes , a solidão , o silêncio e as aves desenhando largos voos ... é com eles que me identifico.


Nunca entendi como se pode falar de interior numa faixa com cerca de duzentos kms de largura...evidentemente que não menosprezo os problemas sentidos pelas pessoas que vivem nessas zonas, mas a situação deve-se simplesmente ao descaso de quem detém o poder.

Beijinho, amiga, tudo d ebom

Petrus Monte Real disse...

Ana,

Mais uma localidade abandonada!
Infelizmente há cada vez mais terras do interior abandonadas pelo poder central!
O desprezo a que são votadas as suas populações é manifesto!
Todavia, na hora de cobrar impostos, os responsáveis políticos incluem-nas na contabilidade como quaisquer outras que vivam em regiões privilegiadas (como por exemplo na capital, no litoral, etc.). Este tipo de situações mancha a coesão nacional (ainda não percebi por que existe uma ministra com um pelouro pomposamente chamado de "Coesão Nacional"!).
Tristeza!

Caríssima amiga Ana, um grande beijo!

J.P. Alexander disse...

Es un bello lugar a pesar de lo apartado. Te mando un beso.

Graça Pires disse...

Vê-se bem que está no Alentejo, nesse espaço de infinitas lonjuras onde apetece calcorrear os caminhos e ir ao deus dará enchendo o olhar e a alma do mesmo húmido brilho. Belíssimo texto!
Tudo de bom.
Um beijo.

Juvenal Nunes disse...

Felizmente que os linces se propagam, pois já estiveram em risco de extinção.
O Alentejo tem uma beleza muito particular.
Gostei das imagens publicadas e do texto que está muito bem escrito.
Abraço de amizade, Ana.
Juvenal Nunes

Olinda Melo disse...


Perdida, deixei-me perder, nessas lonjuras,
nesses caminhos de terra, nessa terra mestiça,
nessa terra esquecida...prenhe de histórias e
de História.

Grata, querida Ana, por este passeio, por esse
recordar de tempos antigos que se encontram na
encruzilhada das nossas memórias.

Desejo-te boa semana.
Beijinhos
Olinda

Janita disse...

Olá, Ana.

Se no outro post me vi grega para comentar, estas lonjuras de agora adoçaram-me a palavra e o olhar.
Barrancos, terra que na minha meninice muitas vezes ouvi falar, mas nunca visitei.
Se gostei do passeio, a descrição dos vossos passos, de uma clareza de pormenores, como tão bem sabes fazer,completou o meu prazer por ter entrado neste espaço e tomado assento.

Sei que não é alentejano quem quer, só quem lá nasce e cresce, olhando a planície e sentindo os seus aromas carregados de uma estranha nostalgia, mas pode "alentejanar-se" quem adopta o Alentejo e é adoptado por ele...

Um abraço a ambos!

Alécio Souza disse...

Querida Ana,
Que maravilha de lugar é o Alentejo, nós só podemos admirar as belezas naturais desse nosso mundo tão castigado e maltratado por tantas guerras, ódio e falta de amor. As fotografias ficaram lindas assim como o seu belo texto.
Um beijo!

Jaime Portela disse...

Um belo passeio, com uma soberba descrição que muito gostei de ler.
Nunca passei por lá, mas senti o peso da História local.
Um beijo e boa semana.