Rara Avis in Terris, JUVENAL, Sátiras, VI, 165

domingo, 18 de dezembro de 2022

SAÚDE E PAZ!

 

Bettina Baldassari


O Silêncio

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


                                 Eugénio de Andrade, in Obscuro Domínio


Ana Tapadas, 10 anos


Têm andado velozes, os dias, entre o luto, a lida, as infecções persistentes e as mudanças transformadoras...a ausência e o silêncio instalaram-se na mente da criança que ainda guardo em mim. Meus amigos, irei visitando as vossas "casas" a pouco e pouco.

Até lá, aqui deixo a todos os meus votos de Saúde e de Paz.


BEM HAJAM!



domingo, 27 de novembro de 2022

Mundo perfeito

 

Bettina Baldassari


    Lembro-me daqueles dias silenciosos e da rua detrás. Já fazia frio, mas que importava? Histórias de mundos longínquos povoavam-me a mente. Quimeras, marajás, gente deslumbrante que levitava sobre tapetes. Um dia eu iria a esses lugares! Levada por sonhos, voraz na leitura, só os meus amigos silenciosos me acompanhavam pacientemente. Se me chamassem para dentro, pelo frio da aragem ou por a mesa estar posta, lá me erguia e eles também, com a vivacidade ágil e juvenil de antanho.
    Onde choveram as pérolas cristalinas desses dias? Que sombra ou que cansaço se inundou de tantas partidas? Que Deus cruel soprou as poeiras dos desertos?



Bettina Baldassari

   
 Estoicamente aqui estamos! Na distância troam as guerras e são tantas...já caminhámos por tantos desses lugares e, por ali, amámos Epicuro, mesmo sabendo como o sangue dos homens se espraiou no horizonte. A nossa existência nunca foi de facções, de matilhas barulhentas ou de folias hedonistas. Reparaste que eu sorria e, aquelas mulheres longínquas, me sorriam de volta. Isto sempre te encantou e sou feliz por ter essa arma serena. Vamos para ser e estar, para conhecer uma remota origem comum. Vamos em busca dessa Humanidade que se fragmenta e que sonháramos herdeira de um destino comum e harmonioso.


Ana


    

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Homenagear Saramago é ler a sua obra


 

Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?

                                                               José Saramago, in Os Poemas Possíveis



quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Ao velho Endovélico

 

Terena, Alto Alentejo - 2022

    
    Há lugares que abrigam o nosso ser com o afago de uma história antiga contada ao serão. Já caminhei por tantos lugares, mas aqui é o meu lugar.

Terena, Alto Alentejo - 2022


    Ainda que as poeiras do deserto me recordem perigos crescentes e toldem a vastidão da paisagem.

Terena, Alto Alentejo - 2022

    Poderia ficar, neste silêncio tão leve, imaginando as velhas defesas que  sobrepuseram as pedras. Então, os gritos dos homens ecoaram em línguas diversas...

Terena, Alto Alentejo - 2022

        A religião e a guerra deram-se as mãos, como sempre, nessa coincidentia oppositorum, onde os contrários se unem. Aqui, o templo se fez defesa militar.

Terena, Alto Alentejo - 2022

    Fala-me, antes, das rosas que sobreviveram aos calores deste estio ardente! Caminha comigo, por estas ruas desertas de casas habitadas para dentro!

Terena, Alto Alentejo - 2022

    Sentemo-nos aqui, escutando o silêncio, tecendo a esperança...


Terena, Alto Alentejo - 2022


                              O velho Endovélico zelará por nós.


Terena, Templo do Endovélico (wikimédia)














terça-feira, 13 de setembro de 2022

Desesperos...



Maluda, Alentejo


    Li desesperadamente, daquela forma quase alucinada que me entope o cérebro, tolda o raciocínio e distancia as emoções...sempre foi assim, nos ásperos dias de Agosto. Gosto de refugiar-me e de encontrar resguardo nos dias rectilíneos de cores e traços duros que a mão de Maluda captou como ninguém. A minha mãe morreu durante o ano lectivo anterior...ainda carrego o luto e o negro.
    O meu íntimo suaviza-se na dureza, já o sabes! Gosto de resvalar até ao meu limite, para recomeçar com um sorriso sereno. Assim se acomodam as emoções, se guarda a melancolia das perdas imensas que este ano me tem trazido.
    Nestes processos o Sul Sereno cala-se. É preciso que feche os poros emocionais todos e me exija os limites, para prosseguir. Quando, na juventude, pratiquei atletismo, correndo a meia distância, tinha essa mesma sensação: controlar-me, superar-me e fortalecer-me no suor do meu cansaço autoimposto. 
    Está, assim, recuperada a capacidade para sublimar a dor da perda e do luto e voltar a pisar a sala de aula com o leve sorriso e a exigência de sempre. Se me exijo, exijo-te! Só assim poderá ser... há anos a aluna Cátia chamava-me, carinhosamente, "a minha atleta", mas ela não sabia disto. Até hoje, interrogo-me qual seria o motivo...

Eléctrico de Ponte de Sor (treinando)

domingo, 14 de agosto de 2022

Tempos estranhos




SINOPSE (WOOK)
"Nascido precisamente ao bater da meia-noite, no exato momento em que a Índia se tornava independente, Saleem Sinai é uma criança especial. No entanto, esta simultaneidade de nascimento tem consequências para as quais ele não está preparado: poderes telepáticos ligam-no a outros 1000 «filhos da meia-noite», todos eles dotados de dons extraordinários. Indissociavelmente ligada à sua nação, a história de Saleem é um turbilhão de desastres e triunfos que espelha o percurso da Índia moderna na sua forma mais impossível e gloriosa. Publicado em 1981, Os Filhos da Meia-Noite, segundo romance de Rushdie, não só deu notoriedade ao seu autor como se tornou num fenómeno de êxito literário.
A sua adaptação ao cinema é o resultado da colaboração da realizadora Deepa Mehta com o próprio Salman Rushdie, que não só escreveu o argumento como dá também voz ao narrador."


    Considerado um escritor do realismo fantástico, na linha de Gabriel García Marques, Günter Grass, Italo Calvino, Jorge Luís Borges e tantos outros grandes autores...é visto pelo islamismo radical apenas como alguém que abandonou a sua crença muçulmana e, como tal, deverá ser morto. É este o tempo estranho em que vivemos.
    O livro que escolhi para hoje foi o que mais gostei de ler. Não li todos e muito menos os seus ensaios, mas posso defini-lo como um grande autor. A sua obra de ficção é vasta (https://www.salmanrushdie.com/books/). Aos 75 anos não merecia ser o objecto da violência. Violência é sempre isso mesmo, sejam quais forem as suas motivações. É um pensador, coisa rara no mundo actual em que tantos espartilhos nos condicionam.
    Tenho amigos de todos os credos. A religião é algo íntimo e de outro domínio. Há quem dite que só a Fé nos salvará, eu prefiro acreditar que só a tolerância o poderá fazer. Como poderemos habitar este planeta, se não soubermos respeitar cada indivíduo?
    O medo colectivo parece tomar conta de todos, como no célebre poema de Drummond de Andrade (1940):

"Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas."



    A nossa época parece dominada por um Medo que vai alastrando e que tudo contamina, terreno fértil para todos os horrores que a Humanidade tem a obrigação de conhecer pois, de muitas formas semelhantes, já os viveu.
    Sabemos, com Drummond, que este não é o tempo do lirismo - por mais belo que seja, o puro gozo estético não nos salvará!



sábado, 6 de agosto de 2022

"E que lhe ofereçam fantasia"

 

Ana Luísa Amaral, Jornal de Notícias, 6-8-2022


    Tinha agora um ar cansado, estava magra e envelhecida...como poderia ter só 66 anos? A doença levara-lhe aquele ar que habitou as minhas aulas e os recursos que a colocavam a falar na primeira pessoa para os meus alunos. Todos se aperceberam que a sua poesia era muito hábil, por vezes genial, com a mestria de quem conhecia muito bem outros autores e, também ela, os ensinara a outros alunos. Todos se aperceberam que ela nunca suplantou o meu amor por outros poetas, mas o ser feminino e doméstico de onde retirava as suas representações de poeta eram admiráveis e surpreendentes. Representações inesperadas e surpreendentes transfiguravam o quotidiano em densidade do imaginário. A sua caligrafia fluída como a fragilidade da Vida. 
    Que ano este, feito de partidas! Valha-nos a ideia de que nem os poetas, nem aqueles que muito amamos caem no esquecimento.
    


sábado, 16 de julho de 2022

"Aprender a ler as sombras"

 




    Andam os dias como sabemos. Tiranias e guerras; mais de mil incêndios, em dois dias, num país que acreditávamos de clima temperado; uma pandemia que ainda grassa; o luto; a luta.
    O meu Alentejo escalda, o meu trabalho não me larga. Quando saio, após o almoço, e atravesso o parque com a roupa negra que agora me cobre, o Sol diz-me que nem os pássaros ousam voar,  pergunta-me aonde vou eu de garrafa de água na mochila e que pressa é esta que me acelera o coração que já foi jovem.
    Do livro que agora leio, roubei o título de hoje...
    Andam os dias como sabemos e os burocratas tomaram o assento dos sábios de outrora. Ironicamente, de tão sistemáticos, parecem não vislumbrar o resultado das suas acções. Creio que se afogaram na luz azul dos seus computadores e lá ficaram prisioneiros de grelhas e de mapas desconhecidos. Diferentes que são daqueles escribas que gravavam com as suas mãos, num esforço ritmado de artesãos, os longos códigos cuneiformes. Assim nasciam as bibliotecas, assim os podemos ler até hoje. 



Museu de Israel, Jerusalém (José Alves, 2019)



   "Os signos inertes de um alfabeto tornam-se significados plenos de vida na mente. Ler e escrever alteram a nossa organização cerebral." 
                                      Siri Hustvedt, Vivir, pensar, mirar



Médio Oriente (José Alves, 2019)

    Que dificuldade terei sempre para compreender que a Humanidade se perca e caminhe de abismo em abismo! Assim, resta-me este destino irremediável de ir a sítios obscuros na tentativa de "Aprender a ler as sombras".


Ana

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Sê tu a palavra

 

Mar Egeu, Creta - José Alves, 2012



1. Sê tu a palavra, branca rosa brava. 2. Só o desejo é matinal. 3. Poupar o coração é permitir à morte coroar-se de alegria. 4. Morre de ter ousado na água amar o fogo. 5. Beber-te a sede e partir - eu sou de tão longe. 6. Da chama à espada o caminho é solitário. 7. Que me quereis, se me não dais o que é tão meu?

                            Eugénio de Andrade, Ostinato Rigore, 1964




Creta, José Alves - 2012

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Esquecidos: expulsos do país

 

Dancing trees, Pantai Walakiri


Ouço José Rentes de Carvalho que, aos 92 anos, caminha sem apoios e fala sem embargos. Que bem caracteriza a portugalidade! As palavras, a que chama "pepitas de ouro", saem-lhe sem afasia alguma e sem bordões de linguagem - espantoso cérebro juvenil pleno de vivências e de argúcia!
"Os políticos actuais são de uma elite do Norte e eu sou de uma pobreza do Norte".
Que falta faz a memória desse tempo antigo, na lucidez de quem observa a civilização actual! 
Tudo parece liquefeito, como se, actualmente, os olhares apenas resvalassem na superfície das coisas.
Também ele tem um blogue, que aqui vos divulgo:

O Blogue:

A entrevista de hoje:

A obra:


 

terça-feira, 14 de junho de 2022

Sol destemperado

 

Cromeleque das Fontainhas, Mora,  Alentejo


     Perco-me e encontro-me nestes dias de Sol destemperado. Com picadas do calor abrasado sobre a minha tez clara, suponho os mais de quarenta graus que tornam a atmosfera estranhamente apocalíptica. Acinzenta-se, pardacento, o céu. Pássaros atordoados voam baixo e ruidosamente. Sinais de um tempo de agouros suspensos.
    Tendo, sempre, para o equilíbrio anímico. Tesouro que os que partiram me souberam aferrolhar. Riqueza inaudita que invariavelmente me é dada nessas bravatas de me testar ao limite...ilhas, desertos, lugares inseguros pelos quais os homens se digladiam, caminhadas ofegantes...assim me ocupam os ócios desenhados.
       Aqui, na charneca, as flores secaram. Aqui, os ancestrais habitaram. Mas, que futuro terão os meus jovens alunos que amanhã partirão expectantes de Futuro?


Ana
       

sábado, 28 de maio de 2022

Guerra


Max Ernst



Tanto é o sangue

que os rios desistem de seu ritmo,

e o oceano delira

e rejeita as espumas vermelhas.

Tanto é o sangue

que até a lua se levanta horrível,

e erra nos lugares serenos,

sonâmbula de auréolas rubras,

com o fogo do inferno em suas madeixas.

Tanta é a morte

que nem os rostos se conhecem, lado a lado,

e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.

Oh, os dedos com alianças perdidos na lama…

Os olhos que já não pestanejam com a poeira…

As bocas de recados perdidos…

O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes…

Tanta é a morte

que só as almas formariam colunas,

as almas desprendidas… — e alcançariam as estrelas.


E as máquinas de entranhas abertas,

e os cadáveres ainda armados,

e a terra com suas flores ardendo,

e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,

e este mar desvairado de incêndios e náufragos,

e a lua alucinada de seu testemunho,

e nós e vós, imunes,

chorando, apenas, sobre fotografias,

— Tudo é um natural armar e desarmar de andaimes

entre tempos vagarosos,

sonhando arquiteturas.


                                         Cecília Meireles, in Mar Absoluto


quarta-feira, 13 de abril de 2022

A Deus

 

"Young Mother Sewing", Mary Cassatt

                                                                                                                    

    Os que muito amo partem, assim, na Primavera. Quiçá para que o meu olhar triste possa repousar na planície e o meu luto se possa transmudar pelas cores efusivas que despertam a nostalgia.

Sempre me tiveste contigo e acreditavas que tenho a força da tua mãe e a doçura de ti própria...só não sei se mereci essa crença.

      A Deus, querida mãe. (A minha mãe partiu a 8 de Abril)





Apesar das ruínas e da morte, 
Onde sempre acabou cada ilusão, 
A força dos meus sonhos é tão forte, 
Que de tudo renasce a exaltação 
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

                                       Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Europa

 

Adolfo Casais Monteiro



Andam corridos os dias, como a brisa que varre a Ibéria. Do longe, apenas os ecos da guerra como uma hiena estranha que gritasse dos confins da minha planície. O tempo esgueira-se como uma sombra fugidia que se aquieta nas noites breves.
Temos o dever de sair dos pequenos mundos e das fechadas conchas em que nos abrigamos. Chego a olhar com desdém os poemas do "eu" que, agora, preenchem os meus dias de trabalho. O individualismo pós-Moderno não me preenche esteticamente, jamais teve essa capacidade. 
Ocorre-me, então, que alguns dos mais construídos poetas, teóricos e valorosos vultos da cultura portuguesa sempre ficaram excluídos de todos os programas escolares, mesmo os universitários.
Assim, remando contra essas marés, aqui deixo um poeta extraordinário para os dias que habitamos - Adolfo Casais Monteiro.

(excerto)



III

Na erma solidão glacial da treva

os que não morreram velam.


Em vagas sucessivas de descargas

A morte ceifou os nossos irmãos.


O medo ronda,

o ódio espreita.

Todos os homens estão sozinhos.


A madrugada ainda virá?


Vão caindo um a um na luta sem trincheiras,

e a noite parece que não terá nunca madrugada,

mas cada gota de sangue é agora semente de revolta,

da revolta que varrerá da face da terra

os sacerdotes sinistros do terror.

A revolta a florir em esperança

dos braços e das bocas que ficaram...


A traição ronda,

A morte espreita.


Uma comoção de bandeiras ao vento...

Clarins de aurora, ao longe...


Os que não morreram velam.


IV

Eu falo das casas e dos homens,

dos vivos e dos mortos:

do que passa e não volta nunca mais...

Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,

ah, não me venha com teorias!

eu vejo a desolação e a fome,

as angústias sem nome,

os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.

E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,

uma insignificante parcela de tragédia.

Eu, se visse, não acreditava.

Se visse, dava em louco ou em profeta,

dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,

— mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.

Olho num pasmo sem limites,

e fico sem palavras,

na dor de serem homens que fizeram tudo isto:

esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,

esta lama de sangue e alma,

de coisa e ser,

e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,

se o ódio sequer servirá para alguma coisa...



Deixai-me chorar — e chorai!

As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,

de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,

e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,

por momentos será nosso um pouco de sofrimento alheio,

por um segundo seremos os mortos e os torturados,

os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,

seremos a terra podre de tanto cadáver,

seremos o sangue das árvores,

o ventre doloroso das casas saqueadas,

— sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...


Eu não sei porque me caem lágrimas,

porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,

eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,

eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,

eu que estou na minha casa sossegada,

eu que não tenho a guerra à porta,

— eu porque tremo e soluço?


Quem chora em mim, dizei — quem chora em nós?


Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:

As ruas são ruas com gente e automóveis,

Não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,

e a miséria é a mesma miséria que já havia...

E se tudo é igual aos dias antigos,

Apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,

eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,

sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,

sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,

uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...


“Europa” de Adolfo Casais Monteiro (Confluência, s.d.) é um poema premonitório. Foi lido aos microfones da BBC, na emissão de língua portuguesa, a 23 de Maio de 1945, por António Pedro. Era o fim da guerra europeia e havia uma grande esperança – a de que, depois da tragédia terrível, que tinha deixado o velho continente exangue, seria possível lançar as bases de uma paz duradoura. Como disse José Augusto Seabra, no prefácio à edição de 1991 (Nova Renascença): “Pela voz forte e timbrada de um intelectual então emigrado, António Pedro, esse poema, da autoria de Adolfo Casais Monteiro, um dos nossos mais corajosos poetas resistentes à ditadura, acordou em quantos o escutavam a esperança de que também para Portugal a hora da liberdade iria soar, na nova Europa que se erguia sobre o sangue e os escombros decorrentes da criminosa aventura totalitária hitleriana”.

                                                                                                                           

Guilherme d' Oliveira Martins



António Pedro, 1940


domingo, 20 de março de 2022

Relatório em forma fechada

 


Inédito, Gastão Cruz


O Poeta partiu, hoje, aos 80 anos.





segunda-feira, 14 de março de 2022

Autocrator

 

google


Já no declínio do Império Romano, naquilo a que gostamos de chamar Império Bizantino, o imperador irradiava o seu poder indiviso e designa-se por Autocrator – palavra de origem grega que significava a centralização de todas as tomadas de decisão se centralizarem num indivíduo. Nesta matriz de poder unipessoal e absoluto, a Igreja submete-se ao autocrata.



A queda de Constantinopla (Fonte: Conhecimento Científico)


Quando o Império Bizantino caiu (1543) e, finalmente, acreditamos ter saído da Idade Média, outros impérios surgiram e novas idades médias se instalaram. A sedução do modelo autocrático de Bizâncio prolongou-se no tzarismo russo.  



Síria (11 anos depois)


As diversas formas de totalitarismos têm em comum esse olhar que vê nos povos a servidão medieval do seu senhor. Temos a obrigação ética de olhar em volta. Crescemos a ouvir falar das guerras, a olhar as guerras...como poderemos projectar o Futuro?



Somália


Como poderemos reconstruir o ser humano que emerge dos escombros, da propaganda, da banalidade envernizada...em que nós mesmos nos afogamos?
Que herança deixaremos aos vindouros?



Iraque (13/3/2022) Um dos edifícios atingidos pelos mísseis iranianos AZAD LASHKARI/REUTERS


Nota: um dia de 2019, subi aos Montes Golã. Disso aqui dei notícia.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Territórios disputados



RTP

Depois de mais um dia longo de secura e Sol, de preocupações diversas e momentos de breve felicidade, repenso como uma pandemia tantas vezes se prolonga em caminhadas assassinas de lagartas de colunas militares...lições da História - cada vez menos estudada nos bancos do nosso sistema educativo.

Há dias assisti a um documentário sobre a Eritreia e percebi que nem uma só vacina para a covid-19, nessa parte do mundo, fora administrada - um horror sobre todos os que, ali, vi.

Como pode o ser humano não respeitar a vida e a paz de outro ser humano? 

Agora, vendo notícias preocupantes, quando procuro descortinar pelo meio das ondas de propaganda e de medo legítimos, o meu computador devolve-me o mapa dos territórios disputados aí pelo planeta que, juntos, habitamos. (Deixo, aos mais curiosos, um link na legenda)

http://metrocosm.com/disputed-territories-map.html

Hoje não acontece o poema. Mesmo que empenhado, ele seria fútil. Mesmo que com as palavras exactas, ele seria o verniz balofo de uma desumanidade anunciada. Não me apetece a Poesia, quando a Humanidade teima em desperdiçar o planeta que pisa e o sopro de vida a que cada um de nós é dado o direito de possuir.

Eu já pisei territórios disputados, ouvi rajadas e vi destroços. Não içarei, por aqui, nenhumas bandeiras, pois elas são, tantas vezes, a mortalha dos homens!

Ana


Post scriptum: não é desânimo, mas revolta.


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

A morte aos 27 anos

 

Sebastião da Gama, n. 10/4/224 - m. 7/2/52, in Presença





sábado, 29 de janeiro de 2022

Sugestão de leitura

 



Não sendo o ensaio sobre religião um tema muito relevante nas minhas leituras, este é um livro com uma abordagem tão invulgar o quanto o senso comum nos dita a sua verdade incontestável. 
Construído sobre o mandamento "Não matarás!", vai ilustrando a violência civilizacional cometida em nome das religiões do Livro. As religiões, enquanto justificação para o ódio e a violência, são o que se vislumbra se nos debruçamos sobre a varanda da História.

"Imagino que uma das razões pelas quais as pessoas se agarram aos seus ódios tão teimosamente se deve a sentirem, uma vez o ódio desaparecido, que serão obrigadas a lidar com a dor" James Arthur Baldwin (o.c.,página 229, cap. 14).